Poemas/Poesias

 

Carta Aberta ao Rio São Francisco

Querido Rio São Francisco: Apesar de estarmos separados geograficamente por milhares de quilômetros, estamos unidos por problemas semelhantes e somos irmãos, pois somos filhos do mesmo Criador.

Os problemas que o afligem, também me afligem. Você "velho Chico" que já foi chamado de rio dos "currais", pois das suas margens partiu o gado que ajudou a povoar o imenso território nordestino, está hoje agonizando.

Depois de construírem diversas barragens em seu leito, que expulsaram os ribeirinhos e mataram a vida da sua água (tudo em nome do progresso), tem uma nova ameaça pairando sobre você; Estão usando um termo pomposo, "transposição das suas águas", para esconder um grande crime. Suas águas serão furtadas (este é o termo correto), não para matar a fome e a sede do povo pobre, mas sim, para movimentar mega projetos dos empresários do agro-business.

Desviar suas águas é como forçar uma pessoa anêmica, a doar sangue. Serão produzidas com suas águas, frutas doces e deliciosas que serão exportadas para os paises ricos e jamais chegarão às mesas dos pobres nordestinos. Aos pobres, destinarão um carro pipa com água lamacenta.

Pois é, caro irmão, apesar de também ter ajudado a construir a história deste imenso país, sou quase desconhecido. Meu nome, Ribeira de Iguape, só aparece na mídia em grandes tragédias, como, por exemplo, quando ocorrem grandes enchentes, que eu não consigo evitar, porque assorearam o meu leito e destruíram a mata ciliar que sempre me protegeu. Agora, me culpam por tudo de ruim que acontece em minha bacia hidrográfica. Lembro-me quando os rudes bandeirantes subiram minhas águas e revolveram minhas entranhas em busca de ouro e outros metais preciosos. Minha água já foi tingida de vermelho, pelo sangue dos escravos que tentavam fugir da horrenda escravidão e eram mortos impiedosamente pelos capitães-do-mato. Minhas margens forneceram abrigo seguro aos escravos que conseguiam fugir até o quilombo redentor. .

Fertilizo a terra, mato a sede de milhares de pessoas, ajudo no transporte da população, forneço peixes e produzo alimentos, mas nada disso parece importar. O homem quer me explorar cada vez mais.

Atualmente, o chumbo abandonado próximo a minha margem, mata meus peixes e envenena a população que bebe da minha água, ninguém faz nada. Mas como diz um ditado dos ribeirinhos: “desgraça pouca é bobagem", deve ser verdade porque uma nova tragédia se anuncia um grande empresário, um dos mais ricos do mundo, quer represar minha água para construir barragens de geração de energia elétrica. Caso isso se concretize, a história do povo quilombola será afogada para sempre.

Milhares de pessoas serão expulsas de suas terras, juntamente com sua cultura centenária. Sairão da terra dos seus ancestrais que a conquistaram com sangue, suor e lágrimas. Estão prometendo o paraíso, mas darão o inferno ao meu pov. Do lar digno de hoje, serão destinados às favelas que oprimem.

A água é sagrada. É dela que vem o batismo que liberta, que sacia a sede, que produz alimentos, que mantém a vida na Terra. Sei que meu povo reagirá e não aceitará passivamente a consumação desse crime hediondo. Espero que o seu povo faça o mesmo, Velho “Chico", desculpe o desabafo, deste seu irmão desconhecido, o velho Rio Ribeira de Iguape.

P.S. Agora é 'Primavera, minhas margens estão floridas e os pássaros cantam ruidosamente. Até quando?

Professor José M. Galindo