Balbina, um megaerro à procura de paliativos.

10/10/2013 10:34

Por André Borges | De Manaus e Presidente Figueiredo

São 8 horas da manhã. O sol já transformou o lago de Balbina em um espelho metálico. Com dificuldade, ainda é possível ver o imenso cinturão de árvores mortas, quilômetros adentro da represa. Na margem, a água chacoalha os barcos de pescadores, uma zoada de insetos e pássaros sai do meio da mata. Quase dá para esquecer que se está diante de uma catástrofe ambiental e de um dos piores projetos energéticos do planeta.
Passados 24 anos, ainda se discute o que fazer para minimizar os graves danos que a hidrelétrica impôs ao ambiente e que solução dar aos moradores da vila Balbina, pequena comunidade cuja existência não estava nos planos oficiais. Em discussão, uma redução do lago, o corte das árvores submersas e a incorporação da antiga vila ao município mais próximo, Presidente Figueiredo.
Balbina inundou 2.360 km quadrados de mata nativa, área equivalente à das cidades de São Paulo e Campinas juntas, para gerar uma potência instalada de apenas 250 megawatts (MW), energia suficiente para atender apenas 370 mil pessoas. A comparação de Balbina com outras usinas instaladas, ou em fase de construção, na Amazônia dá uma dimensão do escândalo protagonizado pelo governo militar e pela Eletronorte, que planejaram a hidrelétrica na década de 70 e levaram quase uma década para conclui-la, entre 1981 e 1989.
Com uma área de alagamento pouco maior que a de Balbina, a hidrelétrica de Tucuruí foi erguida na mesma época no rio Tocantins, no Pará, com capacidade de geração de 8.370 megawatts de energia, 33 vezes a potência de Balbina. A floresta alagada por Balbina é quase cinco vezes superior à que será engolida pelo barramento de Belo Monte, com seu reservatório de 512 km quadrados. A geração de Balbina, no entanto, não chega a 3% do projetado para as turbinas da hidrelétrica do rio Xingu, com 11.233 MW de potência instalada.
Balbina escreveu um capítulo de absurdos na história energética do país. Para entender como isso ocorreu há quase um quarto de século e, principalmente, as suas consequências, a reportagem do Valor visitou toda a estrutura da usina, das suas instalações na casa de força às extremidades de sua barragem. Ouviu comunidades que vivem na região, gestores da hidrelétrica, governos local e federal, representantes do setor elétrico e especialistas em energia e ambiente. A decisão de construir Balbina ainda hoje cobra seu preço e serve de alerta aos novos aproveitamentos hidrelétricos planejados para a Amazônia.
A área alagada não é o único impacto gerado sobre qualquer projeto do setor elétrico - Belo Monte, por exemplo, vai exigir a realocação de mais de 20 mil habitantes de Altamira -, mas o assunto ganha relevância absoluta quando se trata de Amazônia.
A vila Balbina, erguida pela Eletronorte no meio na floresta para abrigar os trabalhadores da usina, chegou a ter 10 mil moradores durante a construção da hidrelétrica. Hoje, os 3 mil habitantes vivem uma relação de conflito e descontentamento com a Amazonas Energia, companhia do grupo Eletrobras que controla a hidrelétrica. No centro da polêmica está, justamente, a cobrança da energia elétrica.
Até 2007, nenhum morador da vila pagava conta de luz. De 2008 em diante, a Eletrobras instalou relógios nas casas da cidade e passou a enviar as faturas mensais para os ribeirinhos. A confusão se armou. Hoje, ironicamente, grande parte dos moradores que tiveram que mudar de suas casas para que a hidrelétrica pudesse ser construída rouba energia. Os "gatos" tomaram conta das ruas da vila.
"O povo realmente está revoltado com essa conta de luz. Eles abandonaram a gente aqui, não deram trabalho, nada. Todo mês, as contas de luz chegam com um valor completamente diferente. Estão cortando a energia das pessoas. Quem atrasa o pagamento, tem o nome enviado ao Serasa ", diz o pescador Orlando Paulo da Silva, de 60 anos, que cresceu nas margens do rio Uatumã, onde Balbina foi construída. "O que eles querem mesmo é que a gente vá embora."
Os "gatos" e a indignação da população de vila Balbina são do conhecimento da Eletrobras. A empresa, no entanto, não vai voltar atrás na decisão. "Não existe nada que nos obrigue a prover energia de graça", diz Rubens Seixas, gerente de operações da usina. "Na verdade, essa vila deveria ter sido desmontada no passado, mas acabaram deixando ela aí para a população da região. Essa decisão foi um erro", diz Seixas.
Hoje, esse erro está caindo aos pedaços. Na porta de entrada da vila Balbina, que ainda possui uma cancela administrada por funcionários da Eletrobras, uma série de casarões de madeira, que abrigavam um museu com bichos empalhados da Amazônia, está desmoronando. A estrutura, que custou dezenas de milhões e o trabalho de um conjunto de arquitetos e engenheiros, apodrece ao relento, com o teto caindo, situação que se espalha em muitas outras casas da vila.
A Eletrobras Amazonas fez um orçamento para reformar os prédios. A obra custaria R$ 6 milhões, R$ 3 milhões só de madeira. Desistiu. "Não dão sequer a madeira para arrumarmos essas casas. Aqui nós estamos vendendo o almoço para pagar a janta. A caça e a pesca pioraram muito. A vida era muito melhor antes dessa usina", diz o pescador Silva. "Antes eu morava no meu próprio rancho, na minha terra. Hoje estou nessa casa. Se eu sair, eles entram e derrubam tudo. E eu não recebo nada por isso."
A Eletrobras Amazonas negocia a integração da vila a Presidente Figueiredo, município de 25 mil habitantes, cuja sede esta a 80 km de Balbina. "Minha visão é que a vila deixe de ser da Amazônia Energia para ser parte do município. São 3 mil eleitores a mais. Vamos fazer nosso primeiro plano para isso", diz Tarcísio Estefano Rosa, diretor de geração, transmissão e operação da empresa em Manaus. (Colaborou Ruy Baron)

Especialista propõe reduzir tamanho do lago da usina

Se não é possível voltar atrás, ainda haveria tempo de, ao menos, minimizar os efeitos do erro. O preço que Balbina impôs ao setor elétrico e ao ambiente leva o presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu, a defender uma ideia polêmica: a redução do lago da usina.
Pela proposta, a hidrelétrica passaria a funcionar constantemente com o reservatório em sua cota mínima de água - 46 metros em relação ao nível do mar, em vez de 51 metros, que é seu limite. Em termos energéticos, a perda não seria tão substancial. Hoje, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) permite que Balbina opere com a oferta média de 130 megawatts (MW). Com o funcionamento na cota mais baixa, a oferta seria de cerca de 100 MW, em média, afirma Andreu, enquanto a redução do lago seria gigantesca.
"Os cálculos preliminares indicam uma redução de 778 km quadrados, um terço de toda a represa de Balbina", diz ele. Isso significa uma vez e meia a área que será alagada pela hidrelétrica de Belo Monte, em construção no Pará.
O impacto na geração de energia para o consumidor também ficaria praticamente neutralizado, por conta da chegada do linhão de transmissão Tucuruí-Manaus, que, em breve, vai ligar a hidrelétrica do Pará à capital do Amazonas e, consequentemente, ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Hoje, Balbina só responde por 12% do consumo de energia de Manaus.
Andreu afirma que a ideia não faz parte do planejamento da ANA, pois a agência não tem competência para definir operações do setor elétrico. "Defendo a proposta como especialista. Balbina sempre foi apontada como uma opção energética terrível, porque tem um dos piores indicadores do mundo na relação megawatt gerado por área inundada", diz,
Em 2010, Andreu discutiu a ideia com o alto escalão dos ministérios do Meio Ambiente e Minas e Energia. Uma forma de viabilizar a ação seria converter a redução do lago de Balbina em medida compensatória para outras hidrelétricas previstas para a Amazônia, como as do rio Tapajós. "Não houve rejeição à ideia, mas faltou apoio político para que uma proposta técnica fosse efetivamente encaminhada."
Na prática, a redução do lago imporia diversas mudanças à região e ao ambiente, que hoje já incorporaram a realidade imposta por Balbina e se adaptaram a ela. Haveria forte impacto na emissão de gases de efeito estufa e, paralelamente, abriria uma rota de acesso às terras demarcadas dos índios Waimiri-Atroari, que chegaram a ter parte de seus territórios invadidos pela água na década de 80, mas que hoje estão isolados por um cinturão aquático. (AB)

'Cemitério' de árvores pode se tornar negócio rentável

O desastre ambiental de Balbina ainda pode virar dinheiro. A Eletrobras Amazonas Energia pretende contratar uma empresa interessada em retirar centenas de milhares de árvores que foram mortas pelo enchimento do lago da usina, mas que ainda hoje permanecem de pé. Balbina retirou apenas 8% da madeira que estava na área da barragem. A avaliação da empresa é que o imenso "cemitério" de árvores criado pela usina - região conhecida como "paliteiro", por conta da paisagem formada pelos troncos secos da árvores - ainda desperta interesse comercial.
A madeira que ficou permanentemente dentro da água desde o alagamento, há 24 anos, estaria em bom estado de conservação até hoje e poderia ser utilizada para fabricação de móveis. Já a madeira apodrecida poderia ser transformada em biomassa, para alimentar turbinas de usinas térmicas.
O negócio está na mesa. A Eletrobras trocou informações com a canadense Triton Logging, que estudou o potencial da área e constatou que há um belo negócio escondido no lago. A retirada das árvores seria automatizada. Um robô com motosserra mergulha no fundo da represa e faz o corte da árvore. Balões de ar são amarrados aos troncos para facilitar a subida da madeira. Tudo em segundos. "É um negócio viável e importantíssimo", diz Rodrigo Moreira, gerente-geral da Triton no Brasil.
A previsão é que, em seis meses, um edital fique pronto. "Estamos procurando um modelo de negócio em que a empresa que retira a madeira reverta parte do material à Amazonas Energia, para que ela possa atender comunidades de ribeirinhos que vivem na região", afirma Tarcísio Estefano Rosa, diretor de geração, transmissão e operação da empresa.
Levantamento florestal feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) estimou que haveria 28,8 metros cúbicos de madeira nobre por hectare dentro da água de Balbina, o que significa aproximadamente 6,8 milhões de metros cúbicos submersos no reservatório de 2.360 km quadrados da hidrelétrica. Entre elas, madeiras raras como tatajuba e mogno.
Boa parte dos troncos estaria em boas condições por conta da baixa oscilação da represa da usina, que chega a guardar 17 trilhões de litros d'água. A cota mais baixa de Balbina é de 46 metros e mais alta é de 51 metros, o que significa que seu nível varia apenas cinco metros, com pouco impacto em áreas mais profundas da barragem.
A floresta morta que hoje atrai interesse comercial não sensibilizou a Eletronorte na década de 80, na construção da usina. Após fazer um inventário sobre a vegetação da região, em 1986, a empresa concluiu que não havia motivação financeira suficiente para bancar a exploração madeireira. (AB)

Empresa mantém área de floresta e cuida dos animais

O cartaz ilustrado com desenhos coloridos de peixe-boi, tartaruga e peixe foi colado logo acima das turbinas de Balbina, dentro de sua casa de força, para anunciar que ali nasce "energia com meio ambiente". Aproximar-se da imagem de empresa ambientalmente responsável tem sido a forma de a Eletrobras Amazonas Energia atenuar o histórico da usina, cuja represa pode ser vista até por imagens de satélite. Qualquer serviço de mapa disponível na internet exibe a mancha d'água que surgiu ao norte de Manaus.
"O que aconteceu é mesmo uma catástrofe ambiental, mas está feito. As coisas não vão voltar ao que eram. Temos que procurar meios de conviver com essa situação da melhor forma possível", diz Estela Maris Lazzarini, líder do processo de gestão ambiental de Balbina.
Estela está à frente do programa de preservação de animais, montado ao lado da usina. Ali, recebe peixes-bois, antas e ariranhas capturados com ferimentos ou em situações de risco. Os animais são tratados e devolvidos à natureza. Uma ilha localizada abaixo da barragem é usada para reprodução de tartarugas. Ao lado da usina, uma unidade de conservação da floresta foi criada com uma área equivalente a duas vezes o tamanho da barragem.
Entre as vigas de concreto do vertedouro da usina, botos nadam livremente com seus filhotes, situação bem diferente daquela dos primeiros meses de operação da usina, quando a água sem oxigênio do lago passou pela usina e matou milhares de toneladas de peixes, mortandade que se espalhou por uma extensão de até 200 quilômetros abaixo do barramento de Balbina. "Os botos são a prova atual da boa convivência que temos. O lago e a hidrelétrica já foram totalmente incorporados pela vida da região", diz Estela.
Em defesa da usina, a Eletrobras Amazonas pondera que, com a operação de Balbina economizou, desde 1989, R$ 18,7 bilhões em queima de combustível fóssil, o que significa que 8,3 bilhões de litros de óleo diesel, altamente poluente, deixaram de ser utilizados.
A emissão de gases de Balbina é controversa. Em 2007, pesquisadores ligados ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) afirmaram que a usina jogava até dez vezes mais metano e gás carbônico na atmosfera do que uma térmica a carvão mineral com a mesma capacidade. Seriam liberados por Balbina cerca de 3.380 mil toneladas desses gases por ano. A Eletrobras Amazonas não confirma os números e diz que estuda os índices de emissão de gases de todas as suas usinas. (AB)
Fonte:Valor Econômico, 09/10/2013, Especial, p. A16.

 

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