BARRAGENS DO RIO MADEIRA-IMPACTOS 7: IMPACTOS SOCIAIS E HIDROVIA

17/07/2014 17:00

PHILIP M. FEARNSIDE

Impactos sociais

A alegação de que as barragens não fariam com que o nível da água subisse acima do nível de inundação natural foi repetida tantas vezes pelos proponentes do projeto e pela imprensa que se tornou um mito, tanto entre o público como entre a maioria das pessoas associadas com os preparativos para as represas. No entanto, a altura que o nível de água subirá varia desde zero na extremidade superior de cada reservatório (isto é, perto de Abunã para o reservatório de Jirau e no local da barragem de Jirau para o reservatório de Santo Antônio), até um máximo logo acima de cada barragem. Um valor médio esconde o fato que a subida do nível da água fica muito acima do nível de inundação natural sobre uma área substancial. Além disso, expressar o aumento em comparação com o nível de fluxo máximo histórico em cerca de 100 anos de monitoramento do rio Madeira (48.800 m3/s) é enganoso para os moradores ribeirinhos que pensam em termos dos níveis de inundação mais baixos “normais” que eles já vivenciaram a cada ano.

O total da população “diretamente afetada” é de 2.849 pessoas (1.762 em Santo Antônio e 1.087 em Jirau), de acordo com o RIMA [1]. Estes números são, sem dúvida, subestimados. Apenas os membros das cooperativas de pesca na área totalizam 2.400 [2]. A população deslocada é, em grande parte, composta de pescadores e outros que dependem do rio para a sua subsistência. Além de proporcionar emprego, os bagres têm sido tradicionalmente a base da dieta para a população que vive ao longo do rio Madeira [3, 4]. As atividades de substituição para dar emprego, tais como uma praia artificial e um centro de turismo construídos na antiga cachoeira de Teotônio, parecem estar aquém de oferecer um meio de vida viável para essa população. Placas postadas na praia artificial instalada para o centro de turismo alertam que a água do reservatório é imprópria para o banho, proporcionando uma indicação da barreira para substituir a pesca com o turismo.

O rápido crescimento da população de Porto Velho, tanto de funcionários de construção e outros, atraídos pelas oportunidades criadas pela atividade econômica associada, resultou em grande pressão sobre os serviços urbanos. Além disso, os serviços, obviamente, serão incapazes de lidar com o lançamento de 20 mil pessoas desempregadas após a conclusão das barragens [5]. O estudo de viabilidade estima que 50 mil empregos indiretos adicionais seriam criados por cada barragem para o fornecimento de bens e serviços durante o processo de construção [6] o que significa que 100 mil pessoas desempregadas adicionais seriam lançadas em Porto Velho. Caso a rodovia BR-319 seja reconstruída e asfaltada a esta altura, pode-se esperar uma migração substancial da população para Manaus (e.g., [7]).

  1. Impactos da HidroviaMadeira-Mamoré

O relatório de inventário [8] mostrou entusiasmo com os benefícios potenciais das barragens para melhorar o transporte:

“Os ótimos solos da Bolívia, de alta produtividade e custos operacionais competitivos, terão seu potencial significativamente aumentado, podendo sobrepujar os melhores no mundo.

Considerando que a navegação possui a melhor relação de custo entre todos os modais de transporte …. podemos afirmar que a implantação do sistema hidroviário integrado ora proposto acarretará, em seu pleno uso, reflexos diretos nos índices da economia agrícola nacional e regional.”

Só os benefícios das hidrovias são enfatizados, e não o impacto do desmatamento estimulado para a soja.

Figura 2. Planejamento das hidrovias indicadas pelo estudo de viabilidade para as barragens do rio Madeira (PCE – 2004).

mapa hidrovias

A relação das barragens do rio Madeira aos esquemas de integração regional mais amplo com base na construção de hidrovia constitui um dos pontos de maior controvérsia (por exemplo, [9]). Um grupo de 11 organizações não-governamentais (ONGs) apresentou uma proposta de uma “moção de referência” sobre as barragens do Madeira para o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) [10]. A proposta citou a inclusão de eclusas no projeto da barragem apresentado no RIMA como prova de que o projeto havia “ocultando por traz de tudo isto [os planos para hidrovias], um grande programa para a América do Sul de nome IIRSA [Iniciativa para a Integração da Infraestrutura da América do Sul] que representa um velho modelo de desenvolvimento baseado em grandes volumes financeiros sem, contudo, considerar o desenvolvimento como resultado de interações entre populações locais, excluindo povos da floresta, riberinhos, pescadores, …”. A “mudança inesperada do Governo Federal” em relação à remoção das eclusas do plano [MME em declarações à imprensa em fevereiro de 2006] é descrito como “uma manobra política para confundir a opinião pública e licenciar o empreendimento, ocultando da sociedade um dos grandes objetivos do projeto”.

Na sua comunicação oficial ao CONAMA, respondendo à moção proposta, o Ministério das Minas e Energia afirmou que “nada há de oculto” sobre os planos da IIRSA, e afirmou que a declaração do Ministério do Meio Ambiente “..consiste de argumentação especulativa e equivocada, sem qualquer fundamento técnico. É um claro acinte à competência do órgão [MMA] e um inequívoco desmerecer de sua atuação [11]. O Ministério das Minas e Energia afirmou que as barragens não são parte da IIRSA [12]. No entanto, as barragens aparecem como componentes importantes da proposta IIRSA, da qual o Brasil é parte (e.g., [13]). Benefícios para a IIRSA são enfatizados no Estudo de Viabilidade [14] e foram dado destaque muitas vezes nas apresentações do projeto pela ELETROBRÁS.

10. CONCLUSÕES

As barragens de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira têm impactos severos, mas a decisão de construir as barragens foi feita antes que os impactos fossem avaliados e o licenciamento prosseguiu sobre pressão política, apesar das preocupações levantadas pela equipe técnica da agência de licenciamento. Garantir a efetiva independência do órgão licenciador é essencial.

Impactos internacionais foram ignorados no caso das barragens do rio Madeira, tais como o bloqueio da migração de peixes para Bolívia e Peru. Informações sobre o mercúrio e sobre alterações do fluxo de sedimentos a jusante também foram insuficientes. Nenhuma consideração foi dada aos impactos dos projetos de infraestrutura associados às barragens do rio Madeira, tais como as hidrovias planejadas para a expansão de soja no Brasil e na Bolívia.

A apresentação oficial dos impactos esperados das barragens no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e em outros relatórios mostra uma tendência sistemática para minimizar a importância dessas preocupações. Quando os benefícios são apresentados, a tendência é de exagerar. O sistema atual, onde os relatórios de impacto são financiados e controlados pelas empresas que desejam construir e operar as barragens, precisa ser substituído por um em que os relatórios são efetivamente independentes dos proponentes.

A tomada de decisão sobre barragens (e outros projectos) precisa ser reformulada de modo que as informações obtidas pelos estudos de impacto ambiental cumpram o seu papel como uma referência para uma comparação racional entre os impactos e benefícios, antes de tomar a decisão de construir as barragens e de comprometer o governo com investimento de recursos financeiros e de capital político.[15]

Veja o mapa do InfoAmazônia da bacia do rio Madeira formada pelas águas dos rios Beni, Madre de Dios, Mamoré e Guaporé.

 

NOTAS

[1] FURNAS (Furnas Centrais Elétricas, S.A.), CNO (Construtora Noberto Odebrecht, S.A.) & Leme Engenharia. 2005. Usinas Hidrelétricas Santo Antônio e Jirau. RIMA. FURNAS, CNO, Leme Engenharia, Rio de Janeiro, RJ. 82 p., p. 47.https://philip.inpa.gov.br/publ_livres/Dossie/Mad/Documentos%20Oficiais/RIMA/TEXTO.PDF

[2] Ortiz, L., Switkes, G., Ferreira, I., Verdum, R. & Pimentel, G. 2007. O Maior Tributário do Rio Amazonas Ameaçado: Hidrelétricas no Rio Madeira. Amigos da Terra-Brasil; Ecologia e Ação (Ecoa), São Paulo, SP. 20 p., p. 6.

[3] Doria, C.R.C., Ruffino, M.L, Hijazi, N.C. & da Cruz, R.L. 2012. A pesca comercial na bacia do rio Madeira no estado de Rondônia, Amazônia brasileira. Acta Amazonica 42(1): 9-40.

[4] Goulding, M. 1979. Ecologia da Pesca do Rio Madeira. Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, AM. 172 p.

[5] Instituto Pólis. 2006. Parecer sobre o Papel do Município de Porto Velho Frente aos Impactos Urbanos e o Estudo de Impacto Ambiental do Projeto das Usinas Hidrelétricas do Rio Madeira. Instituto Pólis, São Paulo, SP. 89 p. https://philip.inpa.gov.br/publ_livres/Dossie/Mad/Outros%20documentos/Parecer%20POLIS/parecer%20polis.doc

[6] PCE (Projetos e Consultorias de Engenharia, Ltda.), FURNAS (Furnas Centrais Elétricas, S.A.) & CNO (Construtora Noberto Odebrecht, S.A.). 2004. Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira: Estudos de Viabilidade do AHE Jirau. Processo Nº PJ-0519-V1-00-RL-0001), PCE, FURNAS, CNO, Rio de Janeiro, RJ. Tomo 1, Vol. 1, p. 18.

[7] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50. Disponível em: https://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/viewFile/241/427

[8] PCE (Projetos e Consultorias de Engenharia, Ltda.), FURNAS (Furnas Centrais Elétricas, S.A.) & CNO (Construtora Noberto Odebrecht, S.A.). 2002. Inventário Hidrelétrico do Rio Madeira: Trecho Porto Velho – Abunã. Processo Nº 48500.000291/01-31. Relatório Final: MAD-INV-00-01-RT), PCE, FURNAS, CNO, Rio de Janeiro, RJ, p. 6.22. https://philip.inpa.gov.br/publ_livres/Dossie/Mad/BARRAGENS%20DO%20RIO%20MADEIRA.htm

[9] Killeen, T.J. 2007. A Perfect Storm in the Amazon Wilderness: Development and Conservation in the Context of the Initiative for the Integration of the Regional Infrastructure of South America (IIRSA). Conservation International, Arlington, Virginia, E.U.A. 98 p. Disponível em: https://www.conservation.org/publications/pages/perfect_storm.aspx

[10] Maretto, L.C., Bezerra, K., Nycz, Z., da Silva, J.M., do Carmo, W., Fonseca, E.X., Galkin, M., Ramos, A., Guimarães, S.H., Nogueira Neto, P. & Agostinho, R. 2006. Processo No. 02000.001151/2006-12, Assunto: Aproveitamento hidrelétrico do rio Madeira. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Brasília, DF. https://www.mma.gov.br/port/conama/processos/3D3ABAEB/PropMocaoIAhidreletRioMadeira.pdf

[11] Brasil, MME (Ministério das Minas e Energia). 2006. Assunto: Pedido de vistas de moção sobre aproveitamento hidrelétrico no rio Madeira, Processo No. 02000.001151/2006-12. Ofício No. 651/SE/MME ao Sr. Nilo Sérgio de Melo Diniz, Diretor do CONAMA, Ministério do Meio Ambiente, Brasília, DF. 16 de maio de 2006. Carta da Secretária Executiva (SE). MME, Brasília, DF. 10 p., p. 10.https://www.mma.gov.br/port/conama/processos/3D3ABAEB/ParecerMME.pdf

[12] Op. Cit. Nota [11], p.6.

[13] IIRSA (Iniciativa para la Integración de la Infraestructura Regional de Sudamérica). 2007. Initiative for the Integration of the Regional Infrastructure of South America. 2007. IIRSA: Vision de negocios del eje Peru´ -Brasil-Bolivia. Initiative for the Integration of the Regional Infrastructure of South America (IIRSA), Washington, DC 34 pp., p. 33. https://www.iirsa.org/ admin_iirsa_web/Uploads/Documents/ mer_lima07_ppt_vn_pbb.pdf.

[14] PCE (Projetos e Consultorias de Engenharia, Ltda.), FURNAS (Furnas Centrais Elétricas, S.A.) & CNO (Construtora Noberto Odebrecht, S.A.). 2005. Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira: Estudos de Viabilidade do AHE Santo Antônio. Processo Nº 48500.000103/03-91. Relatório Final PJ-0532-V1-00-RL-0001), PCE, FURNAS, CNO, Rio de Janeiro, RJ, Vol. 1, p. I-19.https://philip.inpa.gov.br/publ_livres/Dossie/Mad/BARRAGENS%20DO%20RIO%20MADEIRA.htm

[15] Este texto é uma tradução parcial de Fearnside, P.M. 2014. Impacts of Brazil’s Madeira River dams: Unlearned lessons for hydroelectric development in Amazonia. Environmental Science & Policy 38: 164-172. doi: 10.1016/j.envsci.2013.11.004. As pesquisas do autor são financiadas pelo Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (proc. 304020/2010-9; 573810/2008-7), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (proc. 708565) e pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

 

Leia também:

Barragens do Rio Madeira-Impactos 1: Resumo da Série

Barragens do Rio Madeira-Impactos 2: Inundação na Bolívia

Barragens do Rio Madeira-Impactos 3: Peixes

Barragens do Rio Madeira-Impactos 4: Ecossistemas & Gases de Efeito Estufa

Barragens do Rio Madeira-Impactos 5: Mercúrio

Barragens do Rio Madeira-Impactos 6: Efeitos a jusante

Philip Fearnside é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Em 2007, foi um dos cientistas ganhadores do Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC).

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/barragens-do-rio-madeira-impactos-7-impactos-sociais-e-hidrovia/

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