CARTA ABERTA A SOCIEDADE BRASILEIRA ANTE AS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS DE COMUNIDADE QUILOMBOLAS PELA FERROVIA TRANSNORDESTINA

16/07/2015 09:09

 

“Recolhemos na mesma comunhão o trabalho, as lutas, o martírio do Povo Negro de todos os tempos e de todos os lugares. E invocamos sobre a caminhada, a presença amiga dos Santos, das Testemunhas, dos militantes, dos Artistas, e de todos os construtores anônimos da Esperança Negra.”
(Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra em Missa dos Quilombos)

Nós, Comunidades Quilombolas de Contente e Barro Vermelho, grupos de assessoria jurídica popular, grupos de pesquisas, grupos de extensão, outras organizações e pessoas abaixo assinadas, vimos publicamente manifestar repúdio e indignação, bem como intensificar as denúncias referentes à situação de violação de direitos deflagrada nas comunidades quilombolas de Contente e Barro Vermelho (Paulistana - Piauí) ante a implantação da ferrovia Transnordestina.
Vivenciamos, atualmente, um momento delicado no que se refere à proteção territorial e cultural das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas em nosso país. O curso de um projeto caracterizado como neodesenvolvimentista tem sido levado adiante, com grave desconsideração aos direitos já garantidos destas populações.
É nesse contexto que se insere a ferrovia Nova Transnordestina, obra prevista e financiada no âmbito do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal em parceria com os governos estaduais (Ceará, Piauí, Pernambuco). O desrespeito aos direitos das comunidades quilombolas iniciou-se na concepção do projeto e em seu licenciamento, dado que mesmo com a constatação da presença de comunidades Quilombolas no traçado da obra, não foi elaborado pela empresa, nem exigido pelo órgão ambiental licenciador (IBAMA) o planejamento e diálogo com as comunidades atingidas sobre os impactos da ferrovia, concedendo a licença prévia nº 311 em 23/03/2009 e logo depois a licença de instalação nº 638 em 05/08/2009. Diante da dimensão dos impactos de tal obra, todas as comunidades atingidas tinham o direito à informação e no caso das comunidades quilombolas, além disso, tinham o direito a Consulta Prévia, Livre e Informada, prevista no artigo 6° da Convenção 169, que determina a consulta aos povos e comunidades tradicionais interessados, “sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-las diretamente”.
A violação a tais direitos reverberou em uma sequência de outras violações já vivenciadas no cotidiano das cidades e comunidades mais próximas das obras, tais como deslocamentos forçados, indenizações com valores injustos e irrisórios, invasão e perturbação na posse e propriedade dos atingidos, perda de plantações, rachaduras nas moradias e benfeitorias, alteração e perda do patrimônio arqueológico, cultural e ambiental, destruição nos modos de criar, plantar e produzir, configurando, assim, uma violação ao direito à terra, ao trabalho e à soberania e segurança alimentar. Esse conjunto de violações caracteriza um processo de risco a existência das comunidades quilombolas.
Diante de tais fatos, as comunidades Contente e Barro Vermelho, desde o início vêm denunciando, reivindicando seus direitos, resistindo frente ao ataque ao seu modo de vida. Foram feitas denúncias à 6ª Câmara do MPF, que deram origem a inquéritos civis na Procuradoria da República dos Direitos do Cidadão e no MPF de Picos, bem como foi assinado um Termo de Compromisso entre Transnordestina Ltda e Fundação Cultural Palmares estabelecendo como critério de validação do Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAq) – documento necessário para a concessão da licença ambiental – a sua aprovação pelas comunidades atingidas (importante ressaltar que ao longo do traçado da ferrovia foram identificadas, pela própria TLSA, 14 comunidades quilombolas), em 2012, época em que a obra parou.
Entretanto, a licença ambiental de instalação 638 foi renovada em fevereiro de 2014, quando a Transnordestina ainda não havia começado sequer o diálogo com as comunidades sobre o PBAq (a data da primeira visita de apresentação deste é de junho de 2014, na qual a comunidade rejeitou a proposta e fez exigências, conforme documento da própria TLSA). Desde então as obras retornaram em vários trechos sem aprovação do PBAq pelas comunidades, e em relação as Comunidades de Barro Vermelho e Contente a reunião de validação (chamada assim nos documentos da própria TLSA) vem sendo marcada e desmarcada desde novembro de 2014, causando instabilidade e total descrença das comunidades na efetivação das medidas mitigatórias e compensatórias – que se referem a prejuízos causados há 4 anos e que não foram reparados!
Além disso, a informação fornecida se restringe a um documento de difícil compreensão e a uma cartilha sem a prestação de assessoria adequada, além de que a reunião prevê poucos momentos de fala da própria comunidade, existindo ainda a pressão de que nessa única reunião sejam acordados todos os problemas que a construção da ferrovia e de seu funcionamento causou e causarão às comunidades, o que pode gerar acordos sem a devida avaliação por parte da comunidade, destacando-se assim algumas das inumeráveis problemáticas existentes na maneira de condução e no formato dessa reunião. Diante desses vícios, constata-se que a reunião de validação do PBAq vem sendo promovida sob o signo da pressa e da pressão, e acreditamos que o formato atualmente proposto reforça o tratamento autoritário, verticalizado, violento e desrespeitoso destinados às comunidades de Contente e Barro vermelho em seus processos de participação, autonomia, e decisões coletivas.
É importante ressaltar que em nenhum momento esta reunião pode ser confundida com a Consulta Prévia prevista na Convenção 169 da OIT. A temporalidade e o avanço das obras não permitem considerar esta consulta como “prévia” e seu objeto é extremamente mais restrito que o da verdadeira Consulta Prévia, dado que as comunidades impactadas poderiam opinar sobre todos os aspectos do empreendimento, o que atualmente é impossível diante da materialidade e avanço das obras. Tampouco podemos concordar com o formato proposto, ao desconsiderar que a consulta prévia deve ser um processo participativo, informativo, e que a informação deste processo deva ser prévia, completa, independente e livre, sendo o princípio da boa fé norteador deste processo.
Atentamos ainda à situação peculiar de violência e intimidação vivenciada pelas comunidades de Contente no dia 08 de janeiro de 2015, dois dias antes da (última) data prevista para realização desta reunião de validação do PBAq, em que, a empreiteira responsável pela construção da ferrovia colocou suas máquinas e homens dentro do território quilombola, em clara sinalização do quão as obras avançaram sem respeitar os acordos feitos, bem como dispostos a descumprir leis e violar os territórios, os direitos e o bem-estar das comunidades. Esse intuito da TLSA só não se realizou por conta da resistência da comunidade de Contente, que se colocou no canteiro de obras e não permitiu o recomeço da construção da ferrovia em seu território.
Em episódios recentes, funcionários da TLSA pressionaram as comunidades a aceitarem o início das obras, com falas grosseiras por parte do engenheiro da empresa afirmando que a obra vai acontecer queira a comunidade ou não. As comunidades sentiram-se profundamente desrespeitadas nessa reunião, pois a pressão e grosseria chegaram ao nível de não deixar as pessoas falarem. A esta atitude da empresa, as comunidades responderam em reunião seguinte com carta de reivindicações e com a explanação das violações cometidas pela empresa e dos motivos de não aceitarem a volta das obras sem o cumprimento de toda a carta entregue. Ficou acordada nova reunião (em julho), com presença do MPF, Fundação Cultural Palmares, SEPPIR e INCRA, para a TLSA apresentar planos de ações para cumprimento das exigências. Por outro lado, a reunião de validação do PBAq não tem previsão para ser realizada, ao mesmo tempo em que a TLSA afirma a não necessidade da aprovação para seguir com a obra, violando as normativas sobre licenciamento ambiental e os direitos territoriais quilombolas. Além disso, todos os dias chegam notícias do avanço dos trilhos e do funcionamento da ferrovia, tanto no sentido Piauí, como no sentido. 
O momento é crucial para o paradigma com o qual obras como essa são realizadas: o prosseguimento será uma legitimação da ação sem respeito às comunidades quilombolas e comunidades camponesas, será esvaziamento de direitos, processo que enfraquece a ordem democrática de direito para todos, a contrario sensu, o apoio a resistência é contribuir para o fortalecimento de grupos oprimidos que há muito pouco foram visibilizados pela Constituição e que, ainda assim, tem seus direitos sistematicamente esvaziados. Diante deste cenário, conclamamos a sociedade brasileira a se solidarizar, denunciar a grave situação de violação de direitos vivenciada pelas populações tradicionais e quilombolas atingidas pela Transnordestina e apoiar a luta e resistência de Contente e Barro Vermelho.

Assinam,

Comunidade Quilombola Barro Vermelho
Comunidade Quilombola Contente
Associação de Assessoria Técnica Popular em Direitos Humanos – Coletivo Antônia Flor
Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil da Uespi – Coraje
Centro de Assessoria Jurídica Popular de Teresina – Cajuína;
Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Cidadania - DiHuCI/UFPI
Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Comunitária Justiça e Atitude - NAJUC JA.
Comissão Pastoral da Terra – Piauí

Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí – CEQOC​


 

Érica Souza

Secretaria Nacional/MAM

 

Por um país soberano e sério!

Contra o saque dos minérios!

 

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