Natal em tempos de cólera

17/12/2012 10:05

por Nancy Cardoso Pereira, Sábado, 15 de dezembro de 2012

 

Nancy Cardoso Pereira

O descontrole da violência: é o alimento de deus e sua morada. Este desejo ardente de que exista algum motivo fora de nós que nos submeta, que nos atemorize e nos domine como penúltima resposta aos excessos. A última resposta ainda não existe porque a pergunta não formulada antecipa toda metafísica. Metafísica como desistência da carne e sua insaciedade. Assim, deus é abandono e repouso. Eu não sei! Eu não posso! Eu não entendo! Eu não consigo! Antes que me devorem, que me esfolem, que me torturem. Antes que eu devore, que eu esfole, que eu torture: haja deus! E houve deus! Meu limite querido. Meu arreio adorado! Meu cabresto sagrado que me cega os olhos, me entorta a espinha e arranca de mim: ai! meu deus! me ajuda nessa má hora! Essa má hora é o tempo que me cabe viver... não que não me sinta em casa. Não que não me faça bem viver... mas é toda essa gente ao meu redor e esse mesmo mundo, nossa casa comum. Esse mesmo chão e esta civilização da cerca. Esse mesmo verde e suas vegetalidades feito mercadoria, e o lucro como fotossíntese privada. Essa mesma água e suas derivações de sim! e de não! irrigações negociadas nas salas do poder e suas usinas. E esse meu nariz que não é seu. Essa boca sua que eu não reconheço.E as digitais, a pele, os códigos capilares e ósseas estruturas das diferenças. E as fronteiras entre países paridas a fórceps de territórios nunca engravidados.

A violência tem muitos nomes e muitas caras. A violência tem muitas razões e desrazões. A violência é causa e efeito.  A violência é  fruto do nosso erro e do nosso medo. A violência é o que não sabíamos e o que adivinhamos. A violência é porque e por que. A violência é o que nós não queríamos ser e o que nós não soubemos fazer. A violência se explica e confunde. A violência é um espelho e uma prisão. A violência é o meu ódio e a minha omissão. A violência é: qualquer coisa ao alcance da mão. Uma arma é: qualquer coisa ao alcance da mão. Atrás da arma se esconde tudo que ainda não fizemos. Toda a incapacidade de lidar com as desigualdades, as frustrações, os conflitos. Uma arma é um atalho desnecessário, uma resposta apressada para um problema antigo, uma saída equívoca para problemas óbvios. Uma arma é uma covardia feito ferro e munição. Uma arma é o ódio explodindo na ponta do dedo porque ainda não somos tão bons como podemos ser. Uma arma é ferro feito ferida: mortal. Uma arma é trabalho feito morte em vida. Uma arma na disputa no trânsito: tirem nossas carteiras! Proíbam-nos de dirigir. Os carros feito armas, matam. Uma arma na disputa entre vizinhos: tirem nossa liberdade! Coloquem-nos na solitária. As casa feito armas, matam. Uma arma na mão de uma criança, mata... sem querer, sem saber: mata! Evitemos ensinar aos filhos e filhas. Só temos garras e mortos pra mostrar. Uma arma na mão de adolescentes: mata! Esvaziemos os cinemas e as tevês! Costurem nossos olhos que gozam na tela suada de sangue. Uma arma na mão de um amante: mata! Culpemos o amor e seus ciúmes! Acusemos a honra e sua estupidez.

Sueño com serpientes, com serpientes de mar

Com cierto mar Ay! de serpientes, sueño yo.

Largas, transparentes y en sus barrigas llevan

Lo que pueden arrebatarle al amor

(SIlvio Rodriguez)

Mas a violência tem nome e sobrenome: Capital. Capitalismo! Estamos todos e todas passeando pelo esôfago da serpente!  Um animal enorme, largo, transparente, arrebatador e destruidor. Fomos engolidos. A fera nos devora a todas: tem uma fome monstruosa e uma digestão infernal. Está louca. Invencível: pelo menos é assim que a serpente gosta de ser considerada. Ela não pode ser amansada ou domesticada: la mato y aparece outra mayor. Mas é a mesma uma crise depois da outra. Estamos aqui no esôfago da serpente... falta pouco para sermos totalmente metabolizados a não ser que possamos envenená-la do que é justo, do que é belo e do que é verdadeiro. E destruí-la! Mas para isso precisamos aprender a nomear a violência, dizer o nome da serpente e precisamos fazer escolhas. Precisamos da prática e da crítica capaz de desvendar as formas políticas, culturais e religiosas do Kapital e denunciar sua violência. É preciso nomear como o dinheiro/capital pretende deixar de ser meio de circulação atado às necessidades de produção e reprodução da vida material das pessoas e se oferece como mediação das relações: entre as mercadorias (num primeiro momento), entre a natureza e o trabalho e, finalmente, entre as pessoas e os grupos sociais como um todo. Pretendendo a virtualidade/transcendência do dinheiro que faz dinheiro, o capital se projeta metafísicamente ocultando a materialidade das relações desiguais que o reproduzem. O capital/mercado feito deus se expressa na forma do valor e do dinheiro: o indivíduo abstrato do capitalismo só se relaciona com outros indivíduos através da abstração do dinheiro... quase não há espaço para a vida comunitária fora da forma do dinheiro. Já não nos protegemos de nós mesmos e a violência se naturaliza. 

E aí... as igrejas se adaptam! Os pastores viram administradores! A membresia vira consumidor! A religião ocupa a prateleira junto com outros bens e necessidades da fantasia e do simbólico! As canções viram hits consumidos avidamente! O evangelho é vendido como fórmula de prosperidade! E já não se sabe quem é deus... quem é mammon! Logo, não existe o desconforto, contradição, conflito... ou polifonia! E as empresas se adaptam! Os administradores viram missionários! Os consumidores são feitos reféns de um rebanho do marketing! Os monopólios exalam virtudes éticas na forma da caridade coorporativa! Os capitalistas e seus empregados continuam indo às igrejas, fazendo suas contribuições e... se dando bem: assim na terra como no céu! Sem desconforto, contradição, conflito...ou profecia!

Nesse Natal não quero me deixar enganar com as reciprocidades superficiais nem vou arrastar gestos de reconciliação pelo fundo áspero do desespero dos meus dias. Quero uma esperança maior que a violência. Quero um Natal imperceptível. Um Natal desinteressante. Um Natal vazio... como vazia é aquela alguma noite em que nascem crianças imperceptíveis e desinteressantes e que podem fazer os pobres sonhar com Paz na Terra e Boa Vontade. Meu Deus, me ajuda a ver!

   



 

 

 

 

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