Nome: Associação Nova Esperança Quilombola do Bairro Cedro.

 

Fundada em: 19 de outubro de 2005.

 

Reconhecimento pela FCP – Fundação Cultural Palmares: 31 de outubro de 2006.

 

HOSTÓRIA DO QUILOMBO CEDRO

 

A reconstituição histórica do povoado do Cedro só se torna possível através do recurso da oralidade. Assim como em outros empreendimentos antropológicos nos arredores, foi imprescindível sentar com os mais velhos do lugar para ouvi-los relembrar o passado sem, no entanto, desprezar a contribuição valiosa dos dados registrados em trabalhos produzidos anteriormente sobre comunidades remanescentes de quilombos vizinhas 27. Observou-se em trabalhos anterior que os nomes de pessoas como Pacífico Morato de Lima, Miguel de Pontes Maciel, Benedito Rodrigues de Paula, são nomes e sobrenomes invariavelmente evocados no discurso dos interlocutores para se referirem aos antepassados que inauguraram a história do lugar. Como demonstração expressiva de uma consciência

identitária assumida, é que os interlocutores relembram com orgulho no relato deles que estes sujeitos, com nome e sobrenome sempre destacados são os “ancestrais”28; os “antepassados” que em séculos passados foram os primeiros a abrir “capuava”29 e fixar com suas famílias naquelas terras a ermo do alto do Vale do Ribeira, ali bem às margens do rio Turvo. Numa saga empreendedora, como as de muitos outros escravos negros fundadores de quilombos que se ramificaram pelo interior desta encantadora região de Mata Atlântica do Estado de São Paulo.

De fato, conforme se pode verificar através da configuração da árvore genealógica dos grupos familiares constitutivos do povoado rural do Cedro, de fato a maioria dessa população é descendente do patriarca Pacífico Morato de Lima, um dos pioneiros a instalar com a família naquelas terras a ermo cobertas por Mata Atlântica do interior paulistano.

27 Faço menção aqui ao RTC produzido, por mim Rubens Alves da Silva, antropólogo, sobre as comunidades remanescentes de quilombo

dos bairros Ribeirão Grande e Terra Seca – Barra do Turvo, SP. 28 Termo que se observa ser empregado com freqüência no discurso dos interlocutores. 29 Esta palavra é de origem tupi, conforme traduzido pelo Dicionário Etimológico Nova Fronteira da

Língua Portuguesa “capuava” significa: “local apropriado para plantação, roça ... Do tupi kapï’ aua’ ”. (Cunha, 1996, p.152). Antônio Cândido aponta o uso do termo “capuava” também como “Designação corrente de moradia”. (Cândido, 2003 p.78).

 

Em reforço ao que já havíamos verificado anteriormente, através de pesquisa antropológica de campo30, o elo entre os bairros rurais do município de Barra do Turvo, integrados por grupos familiares remanescentes de quilombos, para além do aspecto da proximidade espacial-geográfica, que define a noção de vizinhança, deve ser explicado, sobretudo, pela particularidade da rede entrelaçada e extensiva da relação de parentesco que revela o vínculo aos três patriarcas considerados pioneiros a fincar raízes no lugar. Conforme descrito em RTCs do ITESP31 o estilo de vida semi-nômade foi uma das características marcantes do modo de sobrevivência das comunidades quilombolas no alto Vale do Ribeira. Com destaque para a atividade da agricultura de subsistência, cujo recurso utilizado era a pratica das “queimadas” com intercalação de áreas de plantio deixadas em pousio.

Em afinidade com o relato oral de outros interlocutores remanescentes dos quilombos locais32, desde os primeiros tempos que as dificuldades enfrentadas para sobreviver naquelas terras interioranas do Vale do Ribeira eram muitas. Não havia estradas que ligavam o povoado a outras localidades vizinhas. Os deslocamentos internos e para lugares mais distantes eram feitos através de trilhas que subiam ladeiras e bifurcavam no alto das serras e cujo trânsito só era possível a pé ou em lombo de animal. Essa é a imagem que os mais velhos evocam da memória ao relatar casos do passado ouvido dos antigos ou das lembranças que ainda guardam vivas dos tempos difíceis da infância e juventude:

 Aqui, era tudo mato...nós comprava as coisas em Iporanga. A gente andava uns 70, 74 quilômetros (até chegar lá). Tinha um patrão lá que fornecia calçado, roupa – tecido para fazer roupa... Comprava lá... A gente criava o porco e levava lá pra pagar as contas. Então, o porco era trocado (pelas mercadorias) que o patrão fornecia... O prazo era de um ano pra pagar a conta... Às vezes, não tinha como pagar as contas no ano, o patrão, então, fornecia de novo pra pagar tudo no outro ano... O porco era levado a pé. Andava uns dois, três quilômetros, tirava a peia e ia embora, tocado, tocado... Levava uns dois dias para chegar lá (em Iporanga). A primeira parada era lá, na Terra (Seca), depois, Água Quente. Tinha mangueira, mangueira era feito de Jussara. Abria a mangueira lá e pousava lá. Jussara dura muito né?, aí vinha tocando (porco) neste ano, quando ia tocar outra vez, no outro ano, a mangueira tava lá.

 

30 RTC sobre Comunidade remanescente dos quilombos de Ribeirão Grande e Terra Seca...  

31 Cf.: Laudo dos Antropólogos do Ministério Público Federal, apud.: Turatti, Maria Cecília M. - Relatório técnico-científico sobre os remanescentes de quilombo de Morro Seco/Iguape - SP, 2006, pp.29-30. 32 Ibidem

[Era levado muita quantidade de porcos?]

Era variada (a quantidade de porcos) que levava. Cada pessoa levava, às vezes, até 5 porcos. A maior quantia que o meu pai levou foi 16... [E pra comer...?] Levava o cargueiro. Levava o que podia: farinha, feijão, arroz... Mais era feijão e carne de porco... Matava uma leitoa, e levava... Quando chegava em Iporanga (o cargueiro) tava vazio... A gente parava para descansar o porco. O porco ficava dormindo na ronda, então, a gente cozinhava feijão, fazia tudo. Porque, quando chegava ali (nos pontos de parada) o porco tava cansado, porque o sol era quente. Então dormia, e só mais à tarde levantava; aí, a gente aproveitava para viajar mais. A hora que a gente sempre andava mais era cedo. À tarde

o sol tava quente.

Relembro uma vez que foi eu e o Felix em Iporanga tocando dois porcos. Durou de oito a doze dias pra nós chegar a Iporanga. Naquele tempo era muito difícil ver gente (pelo caminho). Só quase os tropeiros... Imagens carregadas de tensão também são evocadas Na conversa dos interlocutores ao relembrar de pessoas e acontecimentos dos tempos idos de antigamente:

Antropólogo: o senhor contou, ontem, o caso de jagunço aqui, podia repetir pra gente? Pedro: Já falemos disso ontem. Os jagunços atentaram muito nós aqui, minha mãe mesmo... Morreu até animal...

Dito: Isso já é do meu tempo pra cá. Isso eu lembro. Ali onde hoje é a minha casa, onde vocês foram ontem, ali tinha a casa de um homem que tinha uma lanchonete lá em cima. Então, além dos jagunços tinham pessoas que puxava o saco dos grandes. Pessoas pequenas que puxava o saco dos grandes. Aí, tinha um tio meu, ele era dos mais novos da família, ele não ele não era flor que se cheirava, ele não tinha muita amizade com os caras que moravam ali. Então, (as pessoas escondiam na moita[?]), cercavam [ele] no meio do caminho, pra (assustar[?]) ele. Esse caso das grilagens aqui na região. Ele tinha gado, criação de animais, então ele tinha pasto... Ele fazia roça, do jeito dele pra evitar confusão. (Evitar) rixa, né?! Mas tinha pessoas que puxava saco dos grileiros e prejudicava muito ele. Talvez, pra gente que era criança não era nada. Porque criança não leva nada a sério! Hoje a gente vê que aquilo era um massacre muito grande. Pessoas cantando no caminho, (ao passar) em frente à casa das pessoas, gritando de lá, só pra irritar...

Pedro: ...nós passava aperto naquela época...

Estes conflitos e ameaças que contam ter perturbado a paz da comunidade no passado são dramas que ainda nos dias de hoje, por ironia do destino, parece incomodar os remanescentes de quilombo. Por isso, o antropólogo teve o cuidado de desviar o rumo da

conversa em determinado momento, ao perceber certo constrangimento dos interlocutores com a chegada inesperada de um certo morador da comunidade. Pessoa cuja relação estabelecida com a comunidade é de conflito e aos olhos da mesma é vista como alguém “muito perigoso”... (vide diagrama de parentesco, casa 22).

Em relato colhido entre interlocutores de comunidade vizinha um elemento que chamou a atenção do pesquisador foi a ênfase na relação de solidariedade e cooperação estabelecida entre os ancestrais fundadores do lugar. Tema que também se apresenta de modo insinuante nas conversas que tivemos com as pessoas do Cedro:

Antropólogo: vocês sabem dizer quem eram os pais do Pacífico?

Benigno: Isso aí a gente não sabe dizer. Isso aí a gente não alcançou. Porque o Pacífico morreu novo... Porque o Pacífico veio lá dos lados do Eldorado; o pai e a mãe dele era tudo de lá do Eldorado. A documentação dele, na realidade, era do Eldorado...

Antropólogo: quando o Pacífico veio para cá ele trouxe mais gente com ele?

Pedro: Ele veio com a família, mulher e filhos.

Antropólogo: vocês sabem o nome dos filhos que vieram com ele? Quando veio ele já tinha todos os filhos, quais e quantos eram?

Joana: Só o Miguel, o caçula, nasceu aqui. Os outros eu não lembro não. Eu não sei contar, porque não era registrado aqui...

Pedro: Eles eram em três – mesmo que três irmãos -, e um ajudou o outro a instalar com a família aqui [na região].

É importante atentar para esta menção a “três irmãos” que se ajudaram mutuamente no início do povoamento formado às margens do rio Turvo. Nas muitas conversas com os interlocutores do Cedro ficou claro que esta era uma maneira de referirem aos pioneiros na ocupação daquelas termas a ermos, além do próprio Pacífico Morato de Lima, também

Benedito Rodrigues de Paula e Miguel de Pontes Maciel. Esse último inclusive, – e de quem há memória mais detalhada sobre o passado remoto –, é descrito como filho de um escravo que se tornou livre ao ser abandonado na região pelo seu senhor, quando esse decidiu partir para Minas interessado no empreendimento da mineração aurífera, naquelas paradas (cf: Silva, 2006). Não se trata, porém, de evocar o termo “irmãos” no sentido biológico da definição, mas como uma categoria alusiva às condições semelhantes, históricas e sociais, que marca a origem daqueles três antigos e, muito provavelmente, tende a explicar o encontro e a amizade construída entre eles. A propósito desta reflexão, permita-me citar a transcrição abaixo, extraída de um outro trabalho.

Miguel de Pontes vivia em Indaiatuba e resolveu, em conjunto com o cunhado [...] Benedito deixa[rem] Indaiatuba [e] ficaram uns dias no Reginaldo[...]. Chegando no Reginaldo pegaram Pacífico Morato - [ele que já] morava no Reginaldo [e] tinha a sua família formada [no lugar, concordando que] era hora de mudar de lugar, resolveu subir com eles [Miguel e Benedito]; carregando esposa e filhos nos lombos de cavalos e tocando porcos. Foi assim que Miguel, Pacífico [e] Benedito no chegaram no ‘ perovado’. [...] depois de instalar o senhor Benedito e família lá [no perovado - Terra Seca], onde ele próprio também ficou e teve outros filhos, Miguel se instalou com a sua família no Ribeirão [Grande] - que sempre teve o nome Barra do Córrego e córrego do salto. Pacifico Morato [...] trouxe seus filho já grandes e instalou-se no Cedro, ajudado também por Miguel e Benedito33.

A relação de solidariedade e cooperação mútua, conforme apontou Antônio Cândido em Os Parceiros do Rio Bonito, ao destacar o trabalho coletivo classificado nos termos do mutirão, era uma das características da forma da organização social bem como marcante do estilo de vida tradicional dos bairros rurais do interior paulistas. Com efeito, segundo o autor, tratavas de uma prática significativa na sedimentação da rede de relações sociais e forma da sociabilidade constitutiva dos bairros rurais paulistas, entretanto não sendo exclusiva e única. Observando Antônio Cândido a importância fundamental da prática religiosa e lúdica para o reforço dos laços da sociabilidade e a “consciência de unidade” local: [...] há nos bairros uma solidariedade que se exprime pela participação nas rezas caseiras, nas festas promovidas em casa para 33 Relato de Nilce Pontes Maciel – coordenadora da “Associação dos Remanescentes dos Quilombos dos Bairros Ribeirão Grande e Terra Seca” (Silva, 2006). Cumprimento de promessas, onde a parte religiosa, como se sabe, é inseparável das danças. Quando, por exemplo, é muito grande o número de inscritos para promover a festa mensal da capela, um morador que tem promessa a cumprir pode trazer a imagem a sua casa: há reza, distribuição de alimentos e, depois, fandango. Geralmente a primeira parte se desenvolve durante o dia, a segunda, à noite (destaque meu).

Estes aspectos da sociabilidade caipira estão presentes na fala dos interlocutores do Cedro - semelhante ao que se encontra registrado, também, em RTC34 sobre comunidades vizinhas.

A ênfase nos tipos de crenças e práticas religiosas, expressivas de um catolicismo popular e que eram predominantes na comunidade no tempo dos antigos, são mencionadas nas falas dos interlocutores, tais como: a Festa de São Pedro, Festa do Divino e Congo, Dança de São Gonçalo, reza de terço, dança fandango e romarias. A forte influência do catolicismo no bairro Cedro está representada, simbolicamente, pelo templo católico que hoje substitui a antiga capela, construída no passado com “parede de barro e coberta de sapé” e cuja obra, segundo interlocutores quilombolas, deveu-se à iniciativa do antepassado, Pacífico Morato de Lima, por ocasião da sua instalação naquelas terras cortadas pelas águas do rio Turvo. A predominância desta crença religiosa também se insinua nesta transcrição:

Dito: Esse pessoal mais velho tinha uma tradição, não sei se vinda de Deus, estes homens dos nossos que a gente não chegou a conhecer, eles não sabia fazer o nome deles e sabia falar em latim, não é verdade? Eles não sabiam escrever o nome deles e sabia falar latim.

 Antropólogo: O Pacífico falava em Latim?

Dito: Ele sabia, eu não tenho certeza porque eu não cheguei a conhecer, mas os filhos dele falavam em latim. E alguns que aprenderam com ele falavam em latim também – e não sabiam assinar o nome...

Antropólogo: a novena era feita em latim?

Dito: Na linguagem do terço, a novena mesma, era rezada em latim. E eles não sabiam escrever... 34 Idem

Os relatos orais sobre o passado local são sugestivos quanto ao isolamento quase absoluto daquele lugar. Num tempo em que os rios e córregos pareciam mais caudalosos, a flora e fauna mais exuberante. Era o território preservado da natureza; virgem da presença humana e a sua ação transformadora sobre a paisagem local – por menor ou mais equilibrada que fora em respeito ao meio ambiente. Pacífico Morato de Lima chegou no lugar nesse tempo antigo e decidiu que era aquele o lugar abençoado que o santo de quem era devoto, São Pedro, havia lhe reservado para se instalar com a família, em atendimento ao pedido dele mediante promessa de retribuir o auxílio prestado com penitência e festa em homenagem ao santo padroeiro.

Voltando ao Pacífico Morato de Lima, eles eram aqui uma família. Eles eram três. Tem bastante primos dele aí, que são da mesma família. Pra chega ao Pacífico, alguns contam um pouquinho meio diferente. Pacífico vivia aí, eles contam, por estas beradas, lá pelos lados do rio Pardo, mendigando terra de alguém, como se fosse pessoa de terceiro – assim eles contam. Aí, ele fez um pedido pra São Pedro – vou falar um pouquinho diferente do modo que outros primos contam -, ele falou, se ele achasse um lugar onde ele não ficasse dependendo de viver (?); arrumar um lugar onde colocar a família, assentar com a família, ele fazia uma devoção pra São Pedro. Então, ele á tinha feito a promessa antes de chegar aqui. E foi o que aconteceu... Eles conta que ele fez a primeira e a segunda parada; ele veio lá da Terra Seca e assentou a família deste lado aqui. Aí, ele conseguiu fazer uma casinha simples. Construiu a canoa para passar de lá pra cá, para fazer roça. Ele conseguiu fazer uma casa ali, e mandou os filhos dele fazer roça, capinar o terreno, perto daquela árvoe, sem cortar a árvore, de Cedro. Os irmãos dele concordaram em não cortar... Aí começou a capelinha, de pau a pique e coberta com folha de mato. Nas orações que ele fazia – não sei se eu to mentindo – todo mundo que participava tinha muita comida. Ninguém voltava pra casa sem estar bem alimentado... (Ele foi quem fundou a devoção de São Pedro aqui...)

A natureza se transforma em cultura com a instalação de Pacífico Morato de Lima e família no lugar Na reconstituição imaginária do passado, os netos deste patriarca contam que uma das primeiras providências do avô foi aproveitar um tronco de árvore cedro, que encontrou tombado no chão, para construir um “barco”. Recurso utilizado para atravessar sobre as águas do rio Turvo de uma margem para a outra ou deslocar pequenas distâncias entre as localidades vizinhas transportando produtos extraídos da plantação de roças nos arredores. Em torno deste ato imaginário é que se constrói a narrativa de origem do nome dado ao lugarejo, Cedro: “Ali tinha um pé de cedro. Ele encontrou um pedaço do tronco caído no chão. Então, ele fez uma canoa pra atravessar de lá pra cá e fazer roça”.  

Fonte: RTC ITESP dezembro de 2007/ abril de 2008.