Nome: Associação dos Remanescentes de Quilombo dos Bairros Ribeirão Grande/Terra Seca.

 

Fundada em: 06 de abril de 2005.

 

Reconhecimento pela FCP – Fundação Cultural Palmares: Ribeirção em 11 de setembro de 2006.

 

Reconhecimento pela FCP – Fundação Cultural Palmares: Terra Seca em 31 de outubro de 2006.

 

HISTÓRIA DE RIBEIRÃO GRANDE/TERRA SECA

 

    A reconstituição histórica destes dois povoados seria praticamente impossível sem o auxílio imediato ao recurso da oralidade. Neste trabalho antropológico foi imprescindível dedicar tempo para ir ao encontro dos mais velhos da comunidade ouvir deles os relatos de muitas lembranças boas da infância e juventude, assim como as recordações mais tristes que incomoda - experiências vividas, distrações e divertimentos, labutas do cotidiano, nome de pessoas antigas, e parentes próximos já falecidos. O auxílio dos meus interlocutores ao mediar o meu contato com virtuais entrevistados ou disponibilizar sem restrições, para este antropólogo, informações obtidas por eles anteriormente - foi igualmente de enorme valia para o rendimento da pesquisa28. 

 Assim, a exposição que se segue abaixo - e como não podia deixar de ser - é na verdade uma reinterpretação das versões da história dos povoados Ribeirão Grande e Terra Seca que os interlocutores ao expor para este antropólogo não evitaram demonstrar que, mediado pela pessoa do curioso ouvinte, a vontade deles de alguma maneira se concretizava, qual seja contar sobre eles para eles mesmos, num esforço reflexivo e voltado, sobretudo, para o processo de construção identidade de afro-descendente que eles querem reafirmar no contexto situacional deste momento específico, em que estão reivindicando o direito ao título de propriedade das terras desde antes ocupadas pelos seus ancestrais.

E sendo assim, não obstante as elipses, rasuras e emendas suspeitas – parafraseando Geertz, o conteúdo da exposição em pauta não deixa de ser, a bem da verdade, uma reprodução - quase literal - de textos na forma oral e escrita cuja autoria é dos próprios interlocutores e lideranças reconhecidas pelas comunidades tradicionais das referidas localidades no alto Vale do Ribeira. Pessoas acolhedoras com quem, durante a empreitada do trabalho de campo e objetivando à produção deste Relatório Técnico-Científico, pude ter contatos e conversar informalmente em diferentes momentos ou, em alguns casos particulares, manter um contato mais breve chegado de surpresa com o gravador em punho. Este foi o procedimento adotado na maioria das vezes nas entrevistas com os mais velhos. 

Miguel de Pontes Maciel, Benedito Rodrigues de Paula, Pacífico Morato de Lima, são nomes e sobrenomes invariavelmente evocados no discurso dos interlocutores como referencias importante na história das comunidades Ribeirão Grande e Terra Seca. Como demonstração expressiva de uma consciência identitária assumida, é que os interlocutores relembram com orgulho ao relatar que estes sujeitos, com nome e sobrenome sempre destacados, são os “ancestrais”29; os “antepassados” deles que em séculos passados foram os primeiros a abrir “capuava”30 e fixar com suas famílias naquelas terras a ermo do Vale do Ribeira, às margens do rio Turvo. Numa saga empreendedora, como as de muitos outros escravos negros fundadores de quilombos que se ramificaram pelo interior desta encantadora região de Mata Atlântica do Estado de São Paulo.

De fato, conforme verificado através do recolhimento de informações sobre a genealogia de parentesco das famílias constitutivas dos povoados rurais de Ribeirão Grande e Terra Seca, verifiquei que a maior parte desta população pertence a uma rede comum e extensiva de relações entrelaçadas de parentesco, cuja ascendência invariavelmente remete aos nomes de um ou outro daqueles pioneiros no povoamento da localidade. Entre os três, é de Miguel de Pontes Maciel que os meus interlocutores sabem contar com mais detalhes sobre a origem. De acordo com os relatos, Miguel de Pontes Maciel era Filho de ex-escravo. O pai dele veio para o Vale do Ribeira juntamente com a leva de trabalhadores braçais forçados que foram introduzidos na região a propósito da atividade extrativa de aluviais de ouro, perseguidos nas encostas e beiras de rios da região. Depois, com a descoberta das promissoras minas de ouro e diamante entre as montanhas distantes campo e objetivando à produção deste Relatório Técnico-Científico, pude ter contatos e conversar informalmente em diferentes momentos ou, em alguns casos particulares, manter um contato mais breve chegado de surpresa com o gravador em punho. Este foi o procedimento adotado na maioria das vezes nas entrevistas com os mais velhos. Miguel de Pontes Maciel, Benedito Rodrigues de Paula, Pacífico Morato de Lima, são nomes e sobrenomes invariavelmente evocados no discurso dos interlocutores como referencias importante na história das comunidades Ribeirão Grande e Terra Seca. Como demonstração expressiva de uma consciência identitária assumida, é que os interlocutores relembram com orgulho ao relatar que estes sujeitos, com nome e sobrenome sempre destacados, são os “ancestrais”29; os “antepassados” deles que em séculos passados foram os primeiros a abrir “capuava”30 e fixar com suas famílias naquelas terras a ermo do Vale do Ribeira, às margens do rio Turvo. Numa saga empreendedora, como as de muitos outros escravos negros fundadores de quilombos que se ramificaram pelo interior desta encantadora região de Mata Atlântica do Estado de São Paulo.

Contam que o pai de Miguel, chamado Joaquim de Pontes Maciel, foi abandonado pelo senhor dele, um aventureiro que decidiu partir rumo à Minas, também atraído pelas notícias que ecoaram longe dos achados da riqueza mineral naquelas terras ao longe. Esse procedimento é descrito nos Laudos dos antropólogos do Ministério Público e RTCs31 vinculados ao ITESP como tendo sido procedimento comum entre os donos de escravos da região do Vale do Ribeira quando perderam o interesse na atividade da mineração de outro nesta localidade. Sonhando com a riqueza fácil, os senhores partiam para Minas levando consigo apenas os escravos que se avaliava estarem aptos para a longa viagem e agüentar, depois, o serviço pesado da mineração aurífera (portanto, em condições físicas saudáveis e com todo o vigor da juventude); sem hesitar, pois, em deixar para traz, entregues à própria sorte, os doentes e idosos.

Esta teria sido a sorte, também, de Joaquim de Pontes Maciel. Uma vez na condição de homem livre, Joaquim de Pontes Maciel teve que arriscar o sustento da família mudando de lugar e plantação de roça, entre as localidades de Xiririca (hoje Eldorado) e Iporanga. Neste estilo de vida de característica nômade, depois de percorrer diferentes localidades da região, incluindo um lugar chamado Indaiatuba, ele foi parar nas proximidades de Barra do Turvo, no povoado hoje conhecido pelo nome de “Reginaldo” 32. Acredita-se que a chegada dele neste lugar foi por volta do ano de 181733 .

Segundo relato prestado pelo neto de Joaquim de Pontes Maciel, Anésio de Lima34, o avô teve várias mulheres e muitos filhos. Miguel de Pontes Maciel era o quarto da família formada por 11 filhos - a contar com dois outros que o entrevistado apontou como sendo “ilegítimos” ou “particulares”.Os três nascidos antes do Miguel chamavam-se, respectivamente - Paulo, Fausminda e Luciano -, e os nascidos depois -, Maria, Pedro, Joana, Antônio e Geraldo. Os dois “particulares”: Sebastião Dias e Bernardinho.

Este quarto filho de Joaquim de Pontes, Miguel de Pontes aparece nos relatos como um tipo de personagem principal e cuja imagem que se constrói do mesmo é sugestiva da posição de liderança desse antepassado no processo de ocupação das localidades de Ribeirão Grande e Terra Seca.

De acordo com os relatos, Miguel de Pontes Maciel ainda jovem deixou a casa do pai no “Reginaldo” e foi morar em Indaiatuba; onde se casou com a primeira esposa, chamada Verônica. Ela faleceu cedo e o casal não teve filhos. Ainda em Indaiatuba ele se casou pela segunda vez, com Josefa Xavier Rocha, cuja irmã, Maria Xavier da Rocha, era esposa do Benedito Rodrigues de Paula.

Mediado por esta relação cruzada de parentesco Miguel de Pontes Maciel e Benedito Rodrigues de Paula e Miguel se conheceram e tornaram desde então grandes amigos. Parceiros de caminhada, e sempre juntos na aventureira labuta pela sobrevivência eles saíram de Indaiatuba à procura de lugar melhor para o plantio de roça, abrindo picada pela mata adentro. Como era o costume, partiram com a família. “Essa era a rotina deles escreve Nilce Pereira, viviam como nômades. Faziam as roças, tiravam o sustento e partiam para outra região. Por esse motivo foi que Miguel e os companheiros35 dele formavam os bairros. Dessa forma [é] que os netos dos escravos chegaram nesses locais e formaram aqui suas famílias, criaram filhos e viram seus netos chegando...”

O estilo de vida nômade é apontado em RTCs do ITESP como tendo sido uma característica do modo de sobrevivência nesta vasta região interiorana do estado de São Paulo. Estava relacionado ao método tradicional de cultivo da terra que era empregado na região, ou seja, a prática das “queimadas” com intercalação de áreas de plantio deixadas em pousio.36

Ao sair de Indaiatuba, segundo os relatos, Miguel de Pontes Maciel e Benedito Rodrigues de Paula passaram pela localidade do “Reginaldo”, onde permaneceram por algum tempo, conforme sugerem os escritos de Nilce Pereira37. E, lá, conheceram “Pacífico Morato e juntos foram para o‘ perovado’ou (...) “lugar das perobas”, apelido antigo do bairro Terra Seca e por onde teve início a ocupação da localidade pelos três ancestrais38. Segundo a narrativa de Nilce Pereira: Miguel de Pontes vivia em Indaiatuba e resolveu, em conjunto com o cunhado [...] Benedito deixa[rem] Indaiatuba [e] ficaram uns dias no Reginaldo[...]. Chegando no Reginaldo pegaram Pacífico Morato - ele que já] morava no Reginaldo [e] tinha a sua família formada no lugar, concordando que] era hora de mudar de lugar, resolveu subir com eles Miguel e Benedito; carregando esposa e filhos nos lombos de cavalos e tocando porcos. Foi assim que Miguel, Pacífico e Benedito no chegaram no ‘ perovado’39. Este “lugar das perobas”, apelido antigo do bairro Terra Seca, é descrito nos relatos de Nilce Pereira como tendo sido o lugar onde, primeiramente, os três ancestrais se instalaram com a família.

Conta-se que depois de instalar o senhor Benedito e família lá [no perovado (sic) - Terra Seca], onde ele próprio também ficou e teve outros filhos, Miguel se instalou com a sua família no Ribeirão Grande - que sempre teve o nome Barra do Córrego e córrego do salto. Pacifico Morato [...] trouxe seus filho já grandes e instalou-se no Cedro, ajudado também por Miguel e Benedito.

Nos relatos sobre a origem dos povoados de Ribeirão Grande e Terra Seca um dos detalhes a meu ver bastante significativo é a recorrência da menção feita aos nomes de municípios do Vale do Ribeira como “Eldorado”, “Indaiatuba” e “Iporanga”. É preciso lembrar que nestes municípios também se encontram localizadas diversas comunidades tradicionais remanescentes de quilombos (algumas delas inclusive foram objetos de RTCs anteriores e com os quais também estou dialogando no contexto deste documento). Esse detalhe dos relatos – a referência ao nome de tais municípios - pode ser interpretado como um tipo de reforço às marcas simbólicas através das quais se busca evidenciar a identidade étnica quilombola dos povoados Ribeirão Grande e Terra Seca.

Nesse sentido o “Reginaldo” merece aqui destaque especial. A formação deste povoado – como sugere os relatos – é bem anterior aos demais bairros rurais do município de Barra do Turvo, identificados como remanescentes de quilombos; além de Ribeirão Grande e Terra Seca, é preciso mencionar as comunidades do Cedro e Pedra Preta40. Sendo válido sublinhar que esta comunidade foi a primeira a organizar-se na forma de Associação comunitária e, até o momento, a única entre as quatro que já obteve junto à Fundação Cultural Palmares/MINC a “Certidão de Auto-Reconhecimento” como remanescente de quilombo (Vide Documentos anexos/Certidão de Auto-reconhecimento). A pesquisa antropológica de campo permite afirmar que o elo entre estes povoados rurais do município de Barra do Turvo não pode ser explicado somente pelo aspecto da proximidade espacial geográfica, ou da afinidade definida pela noção de vizinhança, mas, principalmente, pelovínculo familiar estabelecido através de ligações ancestrais de parentesco (vide “Diagrama de Parentesco” ao final).

De volta ao relato de Nilce Pereira, outro aspecto detalhado por ela é referente às dificuldades enfrentadas para sobreviver naquela localidade do Vale do Ribeira. Versão que, tal como outras passagens do que ela expõe e das narrativas ouvidas de outros interlocutores locais, articula elementos presentes na história mais ampla do município de Barra do Turvo. Nesse caso, os meios utilizados para deslocar dentro e fora da comunidade e as formas do comércio com outras localidades vizinhas:

Seu Miguel, Pacífico e Benedito trabalharam por muito tempo na região fazendo roça [e] criando porcos para vender em Iporanga, a troco de sal e mantimentos [que não produzia nas terras deles] nos entrepostos. O meio de transporte era os cavalos que costumavam carregar enormes cestas [nas quais] transportavam mercadoria e criança pequena que ainda não agüentava caminhar por muito tempo.

Nos relatos de Nilce Pereira (mas não apenas a versão dela, é preciso ressalvar) há que se observar um outro detalhe de tamanha importância, ou seja, a ênfase na relação de solidariedade e cooperação estabelecida entre os ancestrais fundadores do lugar.

Conta-se que Miguel viveu no Indaiatuba e no Reginaldo. Quando ele chegou no Ribeirão Grande, ele também trazia um filho de 15 dias de nascimento, hoje conhecido como seu Chico - pois chama se Francisco Xavier de Pontes. [...]. Desde de 1886 que eles trabalhavam e sobreviviam aqui. Seu Miguel sustentou sua primeira família tirando sua alimentação dos trabalhos que os três compadres faziam juntos. Esta relação de solidariedade e cooperação mútua enunciada no trecho acima é sugestiva, pois, da forma de organização social e estilo de vida tradicional dos bairros rurais do interior paulistas, conforme apontou Antônio Cândido em os Parceiros do Rio Bonito41, ao discutir sobre as formas da sociabilidade “caipira”, então representadas pela prática do “mutirão”42 e as manifestações lúdico-religiosas. Elementos culturais que, segundo ele, serviam de reforço à “consciência de unidade” local43. Ao discutir a noção de bairro rural Antônio Candido44 explicou o seguinte: Pode-se falar de autarquia, portanto, com referencia ao bairro; não as relações de família no sentido estrito. E um dos elementos de sua caracterização era o trabalho coletivo. Um bairro poderia, deste ângulo, definir-se como o agrupamento territorial, mais ou menos denso, cujos limites são traçados pela participação dos  oradores em trabalhos de ajuda mútua. É membro do bairro quem convoca e é convocado para tais atividades. A obrigação bilateral é aí elemento integrante da sociabilidade do grupo, que desta forma adquire consciência de unidade e funcionamento. Na sociedade caipira a sua manifestação mais importante é o mutirão...

Este trabalho coletivo - o mutirão - era um dos aspectos essenciais, porém, não o exclusivo, - conforme demonstrou Antônio Cândido -, na sedimentação da rede de relações sociais e forma da sociabilidade constitutiva dos bairros rurais paulistas, pesquisados por ele em meados do século passado. Outro aspecto, portanto, também importante para a aproximação das pessoas e integração da comunidade apontada por Cândido e que, da mesma forma que a primeira, trazia a “consciência de unidade” local era a prática lúdico-religiosa. Nas palavras do referido mestre45: [...] há nos bairros uma solidariedade que se exprime pela participação nas rezas caseiras, nas festas promovidas em casa para cumprimento de promessas, onde a parte religiosa, como se sabe, é inseparável das danças. Quando, por exemplo, é muito grande o número de inscritos para promover a festa mensal da capela, um morador que tem promessa a cumprir pode trazer a imagem a sua casa: há reza, distribuição de alimentos e, depois, fandango.

Geralmente a primeira parte se desenvolve durante o dia, a segunda, à noite.

Estes aspectos da sociabilidade caipira estão insinuados também na fala das pessoas de Ribeirão Grande e Terra Seca, nas narrativas dos mais velhos e na versão escrita de Nilce Pereira. A ênfase nos tipos de crenças e práticas religiosas, expressivas de um catolicismo popular predominante na comunidade no tempo dos antigos pode também ser extraído do relato desta última, ou seja: a – Dança de São Gonçalo: Conta-se que as tradições antigas, como romaria, eles passavam a noite ou o dia inteiro cantando e dançando em louvor a São Gonçalo.

Faziam muitas novenas cantadas onde se fazia a mesada de anjo como costumavam dizer eles colocavam as crianças menores de sete anos sentados em circulo no chão em cima de esteira de taboa e faziam uma alimentação farta com doces e salgados.

b – Reza de Terço: “Conta-se, também, que a forma com que faziam o terço ou era cantado ou rezado [falado]. [t]odos [ficavam] de joelho no chão, em forma de penitencia. Enquanto não terminasse a reza ninguém se levantava do lugar”;

c - Canto de Quaresma:

Outra tradição era o canto de quaresma. Todo ano eles faziam a cantoria dos mortos nos lugares onde se enterravam os entes queridos, ou envolta das casas. Essa cantoria ia a noite toda. Muitas vezes] as famílias que eram saudadas com os cantos e orações saiam de suas casas e convidavam as pessoas para entrar e tomar café com porções de amendoim ou cuscuz ou pamonha ou mesmo paçoca de carne[...];

d – Fandango: A forma de dançar romaria era em dupla de homem e mulheres, por volta em torno de 1hora. Como os familiares se reuniam para rezar e festejar, era na casa de um certa vez, e na de outro em vez seguinte. Por isso, durante muito tempo os compadres escolheram o Cedro para fazer [as] suas festividades, [que aconteciam] uma vez por mês e no 1º domingo[...];

e – Festa de São Pedro, Festa do Divino e o Congo: “No dia de são Pedro iam todos para preparar a festa e novena em louvor ao santo [...]. Conta-se, também, que os restantes de imigrantes também mantiveram seus costumes. Um desses costumes  era a passeata [sic] da bandeira do divino. Os andores dos santos de cada mês e dia, eram enfeitados com varias fitas coloridas. E eles saiam visitando as casas, cantando e tocando instrumento como pandeiro viola cavaquinho e congo; fazendo barulho e cantoria. Por onde passavam, todos saiam para ver ou acompanhar o cortejo até a outra casa. Quando chegava a noite, eles dormiam na casa da pessoa [onde estavam de passagem]. Nesses dias eles ficavam até tarde cantando. E [aqueles] que tinham ido acompanhar os dançantes voltavam para casa [...]”.

A forte influência do catolicismo nos bairros Ribeirão Grande e Terra Seca é manifestada, ainda, na memória evocada do primeiro templo edificado para a prática dos ritos e cultos expressivos da “fé” nos “deuses e santos”46 dessa religião cristã: com o passar do tempo os mais velhos foram ficando cansado e com os filhos todos crescendo resolveram que era hora de fazer uma capela no Ribeirão Grande; pois para ir no Cedro, só iam uma vez por mês. A família crescia cada vez mais e eles não queriam deixar perder o costume de passar as suas crenças e devoções aos filhos. Foi assim que o senhor Bernardinho resolveu que era hora de fazer uma capela, pois até então usavam a sala e o quintal da casa dele, ou seja o terreiro para rezar e onde fizeram um pequeno altar dentro de uma casa abandonada que só tinha algumas paredes de piri47 e [o material da] cobertura era palha de palmito. Ali dentro é que rezavam, sem muita proteção da chuva e do sol. Por isso construíram uma capela de barro e sapé que ficava no lombinho acima [de onde] hoje se localiza o salão comunitário. Foi passando o tempo e eles construíram várias outras igrejinhas. A instituição oficial da prática religiosa do catolicismo local está, também, guardada na memória de um tempo passado e quando a primeira geração nascida no povoado já ocupava o lugar dos ancestrais, e se tornava, por sua vez, a referência moral e dos valores que deveriam ser preservados na comunidade: Conta se que o primeiro Bispo a chegar ao Cedro e Ribeirão Grande foi o bispo Dom Aparecido. Ele vinha de carro até a br48 e descia o restante do caminho a cavalo, até chegar ao Cedro e ao povo do Ribeirão Grande e Terra Seca. Ele vinha de Registro. O senhor Bernardo de Pontes se deu muito bem com o bispo, e eles ficaram muito amigo. Quando já havia as estradas cortadas, ele veio fazer oração na capelinha e chegou de fusca. Mas para chegar até a capelinha tinha que seguir à pé por um caminho de tropeiro e atravessar a água, [passando por uma ponte que era feita de uma tora de madeira. Ele deixou o carro [á beira da estrada seguiu o caminho. Como ele não tinha o costume de atravessar este tipo de ponte ele caiu na água. Molhado, ele teve de vestir uma roupa emprestada do senhor Bernardo.Neste dia a senhora Rosa esposa de Bernardo Pontes coordenou um almoço comunitário em homenagem ao bispo. Depois da celebração o bispo resolveu visitar a paróquia que era administrada pelo padre de Iporanga. No intervalo em que ele foi para a cidade a senhora Rosa Marques sofreu um derrame. Então o senhor Bernardo correu para estrada para esperar o bispo voltar para levar ela para o hospital de Pariquera-Açu. O bispo ficou com ela no hospital, apesar do cansaço, ate as 6hs da manhã do dia seguinte. Ela demorou para se recuperar; e ele sempre passava no hospital ou ligava lá para saber como ela estava passando. Foi dessa forma que eles passaram a ser evangelizados pela diocese de Registro onde era a sede do bispo.

O passado se articula com o presente de várias maneiras. As frases sublinhadas acima servem para exemplificar isso. Primeiramente, destaco as “pontes feitas com tora de madeira”. Estas pinguelas continuam a servir nos dias de hoje como caminho de passagem para atravessar os rios e córregos que separam casas e dá acesso a estrada (SP/287) que corta os bairros Ribeirão Grande e Terra Seca. Quanto às cidades de Registro e Pariquera-Açu, são dois municípios vizinhos de Barra do Turvo que, em relação a esse último, possuem uma condição de infra-estrutura um pouco melhor, ou seja, em termos de comércio, escolas e hospitais. Relacionada à questão da saúde são para estes dois municípios que são encaminhadas, mais freqüentemente, as gestantes às vésperas de dar a luz e as pessoas com sintomas de doença grave ou então acidentadas e que necessitam com urgência da intervenção cirúrgica.

Ao refletir sobre a articulação do passado com o presente no contexto desta exposição sobre a história oral dos bairros Ribeirão Grande e Terra Seca, é válido lembrar uma frase enunciada por João Ubaldo Ribeiro em Viva o Povo Brasileiro: “O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, o que existem são histórias”. Esta citação sugere que a reconstituição do passado é uma questão de interpretação de acontecimentos, fatos ou versões que se considerou importante ou significativos para demonstrar algo que se tornou interessante, sobretudo, porque auxilia a dar sentido á vida das pessoas ou de determinada coletividade. Nesse sentido, é preciso considerar que as versões exploradas ao longo deste capítulo são significativas e ganham importância maior, ainda, porque vêm expressar o ecoar de vozes que muitas vezes foram ignoradas ou mesmo desqualificadas - e, desse modo, a impedir que os seus protagonistas tivessem a oportunidade de contar a seu modo e repensar sem constrangimento a sua própria história. Enfim, como sabemos a construção da identidade depende também da reflexão a partir da memória evocada do passado. E como tem sido demonstrado é nesse processo que estão envolvidos de corpo e alma os meus interlocutores e remanescentes dos quilombos Ribeirão Grande e Terra Seca. 

28Esclareço que entre as fontes que recorri para escrever este capítulo menciono dois textos redigidos por Nilce de Pontes Pereira coordenadora da “Associação dos Remanescentes de Quilombos dos Bairros Ribeirão Grande e Terra Seca”, em forma de rascunho. Um primeiro, rascunhado à mão e, um segundo, ao que parece uma reelaboração deste anterior, em versão digitada em computador.

29 Termo que se observa ser empregado com freqüência no discurso dos interlocutores.

30 Esta palavra é de origem tupi, conforme traduzido pelo Dicionário Etimológico Nova Fronteira da LínguaPortuguesa “capuava” significa: “local apropriado para plantação, roça ... Do tupi kapï’ aua’ ”. (Cunha, 1996,

p.152). Antônio Cândido aponta o uso do termo “capuava” também como “Designação corrente de moradia”.

(Cândido, 2003 p.78).

31 Sigla de Relatório Técnico-Científico.

32 Segundo a tradição oral, esta denominação popular do bairro presta homenagem a um dos primeiros moradores do povoado pelo grande feito dele de ter construído uma “canoa” – de maneira insinuada como tendo sido a primeira - naquele lugar.

33 Estou considerando aqui a data indicada nos textos esboçado por Nilce de Pontes Pereira.

34 Estou reproduzindo aqui o depoimento gravado por mim, em 01/11/2006, prestado pelo Morador do bairro Reginaldo, o senhor Anésio Ribeiro de Lima, de 71 anos de idade, neto de Joaquim de Pontes Maciel. Ele é o coordenador da “Associação dos Remanescentes de Quilombo do Reginaldo”. A primeira entidade desta natureza fundada na região do município de Barra do Turvo.

35 Referindo-se aqui, também, à pessoa de Pacífico Rodrigues de Paula, a quem mencionei no início.

36 Cf.: Laudo dos Antropólogos do Ministério Público Federal, apud.: Turatti, Maria Cecília M. - Relatório

técnico-científico sobre os remanescentes de quilombo de Morro Seco/Iguape - SP, 2006, pp.29-30.

37 A propósito do trabalho etnográfico, cumpre-me informar que consultei dois originais desta autora, Nilce de Pontes Pereira; ambos, diria, em forma de rascunho. Trata-se, esclareço, de uma versão preliminar anotada à mão em folha de caderno com pauta e no formato tamanho grande; e uma segunda versão, síntese da primeira, digitada e impressa.

38 Esta referência aparece nos rascunhos, e a origem do termo pode ser apreendida através deste trecho

digitado: “[...] foi assim que eles chegaram junto com o cunhado (Benedito Rodrigues de Paula) e seus [sic]

filhos do primeiro casamento [...] na terra seca que antes eles batizaram com [o nome] de perola [peroba]

por causa da árvore que tinha no local da 1ª residência: [...] essa planta muito grande e frondosa. [Por isso]

foi chamado de lugar das perobas.” (as intercalações entre colchetes são minhas).

39 Esta referência aparece nos rascunhos, e a origem do termo pode ser apreendida através deste trecho

digitado: “[...] foi assim que eles chegaram junto com o cunhado (Benedito Rodrigues de Paula) e seus [sic]

filhos do primeiro casamento [...] na terra seca que antes eles batizaram com [o nome] de perola [peroba]

por causa da árvore que tinha no local da 1ª residência: [...] essa planta muito grande e frondosa. [Por isso]

foi chamado de lugar das perobas.” (as intercalações entre colchetes são minhas).

40 Além da comunidade alvo deste laudo antropológico, é preciso mencionar que as comunidades remanescentes de quilombos dos bairros Cedro, Pedra Preta, semelhante ao caso do Reginaldo, ainda aguardam a consultoria técnica para produção do laudo antropológico exigido no processo para obtenção do título das terras reivindicadas. No caso da comunidade Pedra Preta o problema é mais complicado pelo fato deles não terem conseguido, ainda, organizar a Associação representativa da comunidade local.

42 Cândido, 2003, p.87.

41 Trata-se de um estudo realizado por ele nos anos 1950 focalizando a vida caipira, a sua dinâmica e transformações.

43 Ibidem, p.98.

44 Cândido, 2003, p.87.

45 Ibidem, p.98.

46 Expressão apropriada de Carlos Brandão em O divino, o santo e a senhora, 1978.

47 De acordo com o Aurélio, “piri” é uma “Espécie de junco da família das ciperáceas (Rynchospora cephalotes), que cresce nos terrenos pantanosos, e do qual se fazem esteiras.” (Cf. Novo dicionário básico da língua portuguesa, 1988, p. 508).

48 Referência à rodovia 116 – Regis Bittencourt

Fonte: RTC ITESP dezembro de 2006/ Versão corrigida maio de 2007.