Nome: Associação Quilombo de Ivaporunduva

Data de Fundação: 14 de julho de 1994. 

Publicação RTC: D.O. E – Diário Oficial do Estado; Poder Executivo, Seção I, São Paulo, 108 (217), terça-feira, 17 de novembro de 1998 – 3 – 4.

RTC - Relatório Técnico Científico de identificação étnica e territorial dos remanescentes de Quilombo feito pela antropóloga Cleyde Rodrigues Amorim e equipe técnica da Assessoria de Quilombos do ITESP - Instituto de Terras do Estado de São Paulo.

    D.O. E – Diário Oficial do Estado; Poder Executivo, Seção I, São Paulo, 108 (235), sexta-feira, 11 de dezembro de 1998 – 6.

    RTC - Relatório Técnico Científico de identificação étnica e territorial dos remanescentes de Quilombo feito pela antropóloga Cleyde Rodrigues Amorim, que se fundamenta e transcreve parte do laudo dos Antropólogos  Deborah Stucchi, Mirian de Fátima Chagas, Sheila dos Santos Brasileiro e Adolfo  Neves de Oliveira Junior, constantes dos autos do inquérito Civil Público n.º 5, de 1996 em curso no Ministério Público Federal.

Memorial Descritivo: Perímetro 10º, 12º,13º e 14º

                                     Município Eldorado

                                     Local Gleba: Comunidade de Ivaporunduva

                                     Área: 2.754,3619 ha

    O dia 01/07/10 entrou nos anais da história das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira – Estado de São Paulo e principalmente do Quilombo de Ivaporunduva com um precedente inestimável.Depois de longa batalha judicial.

    Em cumprimento da decisão Judicial proferida nos Autos da Ação Declaratória nº 94.0020556-2, julgada pela 2ª Vara Federal de São Paulo, bem como em cumprimento ao Art. 68 do ADCT, Arts. 215 e 216 da Constituição Federal, Decreto 4887/2003 e Instrução Normativa INCRA nº57/2009, os membros da Diretoria da Associação dos Remanescentes de Quilombo de Ivaporunduva, estiveram no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Eldorado, para assinar o REGISTRO de suas terras.

 

HISTÓRIA DO QUILOMBO IVAPORUNDUVA

Pela definição extraída do Segundo Livro do Tombo da paróquia de Xiririca de 1813, o nome Ivaporunduva significa Rio de muito VAPORU (fruta).

Ivaporunduva é a mais antiga das comunidades da Baixada do Ribeira. Tem sua origem na atividade mineradora. Surge como povoado no século XVII, mesmo

antes de Xiririca, com dois irmãos mineradores: Domingos Rodrigues Cunha e Antonio Rodrigues Cunha e um grupo de 10 escravos, comprados de Antonio Soares de Azevedo, conforme documento citado por YOUNG14.

“1o uma sociedade [de Domingos Rodrigues Cunha] com seu Irmão Antônio Rodrigues Cunha em huma lavra que comprarão com dez escravos do defunto Antonio Soares de Azevedo em cuja trabalhava serviço braçal e ao mesmo tempo feitorisando os escravos todo por tempo de hum anno.

2o Que o dito seu irmão Antonio Rodrigues Cunha andava o mais do tempo fora da lavra ficando so o suplicante nela e só na apuração das catas lavando ouro e como caixa o distribuía.

3o Que elle achando-se nas lavras de Upuranga anno e mejo em todo este tempo andava em cobrança do sito seu Irmão fazendo os gastos e da custa e em tres viagens que fizera as minas do Piahy a huma cobranço de Capp. am Mór Fran.co Alves Marinho sem o dito seu Irmão lhe desse desgostos.

4o Que elle supte. trabalhando nas lavras de Serocabas por perssuasão do dito Irmão e de Deonisio d’Oliveira o qual se empenhou a seduzillo pa vir pa esta villa afim de conseguir a sociedade em que lhe mandara fallar. Mandando vir fazendo do Rio para o Supte. Negociar com ella com efeito viher a dita.

5o Que desertando o Supte. das lavras de vupuranduba d’onde se achava minerando estivera nesta villa lutando hum anno e o cabo delle faltando lhe ao ajuste se deliberou o Supte. A tornar pa. as ditas lavras de vupuranduba.”

Ivaporunduva foi mais densamente povoada a partir de 1.720 com diversos mineradores e seus escravos. E, em 1.791, lá é inaugurada a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, construída com trabalho dos escravos durante cerca de cinco anos. Inaugurada com festejos, tinha como seu patrimônio uma casa de taipa e uma lavra de ouro, doada por um minerador do bairro.

Contam seus moradores que há muito tempo chegou ao lugar uma senhora, Joanna Maria, trazendo consigo pretos escravos para o serviço da mineração do ouro. Mandou construir uma casa para sua moradia, da qual hoje existem apenas vestígios do alicerce, e uma a Capela para realizar as celebrações religiosas.

“A capela era ‘remediada’ possuindo um patrimônio cujos juros, somados às contribuições dos pretos, davam margem para uma ornamentação decente.” 15 “Acreditam os moradores que há ainda, escondido no interior das paredes da capela, muito ouro do tempo da mineração, um tesouro incalculável.” 16

Antes da construção da Capela, os ritos católicos foram, por 22 anos, ministrados por Joanna Maria, natural de Minas Gerais. Joanna Maria, senhora bondosa que fazia de sua casa abrigo dos pobres e dos peregrinos, chegou à região casada com um português, André de Souza; viúva deste, tornou-se a se casar com João Marinho, também de Portugal e por morte deste casou-se ainda com João Manuel de Siqueira Lima, natural de Minas Gerais. Joanna Maria foi a alma de Ivaporunduva, assim como sua origem.

Nos registros do Livro do Tombo e nos relatos orais dos moradores de Ivaporunduva e de outros bairros negros do Vale do Ribeira, constata-se que as terras foram doadas por Joanna Maria aos escravos que lhe serviram em vida, contemplandoos com a liberdade ao morrer. “Falecida aos 02 de abril de 1.802, com idade de 90 annos, sem deixar bens alguns, porque em vida soube distribuí-los, e remunerar com a liberdade os escravos que lhe servião.” 17

De maneira geral a ocupação da região e, em particular, de Ivaporunduva ocorreu em decorrência da intensa mobilidade geográfica característica da extração do ouro de lavagem. A instabilidade das moradias, acompanhadas por pequenas roças de subsistência dos mineradores e seus escravos, levou a uma dinâmica econômica que absorveu expressiva mão-de-obra escrava. Através do rio Ribeira conduzia-se o metal extraído das minas até Xiririca, hoje município de Eldorado, e Registro, centros que se encarregavam da distribuição do produto. Parte dos mantimentos necessários para a manutenção do grupo era adquirido nestes centros, outra parte era por eles mesmos produzida.

Com o decréscimo das quantidades de ouro, em meados do século XVIII, os escravos foram alforriados e entregues à própria sorte. Aconteceu a gradativa saída da população branca da região, ampliando-se as áreas ocupadas pela população negra em Ivaporunduva.

A depopulação branca contribuiu para a diminuição da mão-de-obra escrava, antes trabalhadores da mineração. Refugiando-se nas práticas de uma economia de subsistência, ancorada no cultivo de pequenas roças – sobretudo arroz, milho e feijão - suplementando a atividade agrícola por meio das atividades de pesca, coleta e caça, apossaram-se de parcelas livres relativamente próximas ao centro do povoado e isolaram-se em núcleos familiares, que compunham um grupo mais extenso e igualitário, graças aos vínculos de solidariedade e de sociabilidade baseados nas obrigações mútuas próprias do parentesco, da vizinhança e do compadrio.  Construíram, enfim, uma identidade própria, centrada na origem comum, na cor negra da pele e sobretudo na devoção à Santa padroeira de Ivaporunduva, Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. E assim permaneceram durante décadas e décadas, até meados dos anos de 1.950.

No período aqui em consideração, alguns intercâmbios com núcleos mais afastados restringiam-se às trocas para aquisição de produtos tais como sal, querosene e tecidos, bens, em geral, disponíveis apenas em povoamentos mais adensados.

Cada vez mais os negros transformavam-se em pequenos produtores fixando-se em terras apossadas mato adentro. À beira das águas que deságuam no Ribeira, plantavam, entre outros produtos, principalmente arroz para subsistência e comercialização realizada por via fluvial.

Em linhas gerais, a ocupação do bairro de Ivaporunduva ocorreu num primeiro momento, a partir de uma população, em sua maioria negra e escrava, trabalhando nas atividades mineradoras. Na medida em que se estabilizava a atividade agrícola na região, atingia-se um certo equilíbrio entre a presença da população negra livre e a de algumas propriedades com utilização de mão-de-obra escrava. Uma das maiores fazendas, presente no imaginário da população negra, é a Caiacanga, propriedade de um cruel senhor de escravo, Miguel Antonio Jorge, que era assim descrito: “ele era do tempo da monarquia do padre ainda, do tempo dos escravos, ele tinha uma fazenda. Esse grilou bastante terra, até que não tinha mais para entrar para dentro depois que o outro entrou. ... Ele era meio parente de Joanna de Ivaporunduva.”

Nos documentos localizados, Miguel Antonio Jorge aparece como o único estrangeiro da região, ora definido como português, ora como espanhol. Estabelecido desde, pelo menos, a década de 30, morto em 1.880, foi vereador e Delegado de Polícia, reconhecido como o maior comerciante da região, dono de extensas plantações de arroz e de uma fábrica de aguardente. A fazenda Caiacanga, em 1.854, foi denunciada como “coito de quantos criminosos há nesta cidade, daquella villa e de Serra Acima [e] tem com os seus escravos para mais de 300 pessoas”.

À medida que a população branca saía de Ivaporunduva crescia o reconhecimento do bairro como lugar eminentemente habitado por negros. Em 1.852 esta condição foi exposta pelo Juiz de Paz da Vila de Xiririca, relatando enterros de cadáveres no adro, arredores da capela, ou ainda, nos próprios sítios dos moradores, sem as devidas certidões. O isolamento da comunidade contribuía para que eles próprios realizassem suas celebrações e enterrassem seus mortos, uma vez que esporadicamente contavam com a presença do pároco da Vila de Xiririca.

Com o tempo o bairro de Ivaporunduva foi se transformando numa área para onde era atraído grande contingente de negros livres, libertos, fugidos ou não, que se agrupavam em torno da capela, nas terras da Santa e nas regiões mais interiorizadas do bairro.

Estes pequenos produtores negros ocuparam Ivaporunduva durante os séculos XVIII e XIX, antes da abolição dos escravos. Classificados como pretos, mulatos ou pardos, agregavam-se a eles as qualificações de livres, libertos e, minoritariamente, a de forros. Têm como principais troncos familiares, registrados pelos assentos do Livro de Terras ou em relatos orais, relacionados aos fundadores do bairros, ou seus primeiros moradores as seguintes descendências: Pupo, Marinho, Meira, Vieira, Pedroso, Moraes, Araújo, Machado, Pereira, Santos, Costa, Furquim e Silva.

O reconhecimento atual dos informantes de certos nomes como fundadores do bairro é capaz de operar a reconstituição genealógica dos últimos 150 anos, recuperando aspectos importantes dos tipos de ocupação e mobilidade característicos da presença dessa população negra no Vale. Os registros de batismo realizados na Capela de Ivaporunduva indicam que, a partir de 1.817, ali já se encontravam vários troncos compostos por pretos livres. Antes de 1.820 já se pode localizar os Marinho, Costa, Pereira, Morato, Pupo, Dias, Machado, Oliveira e Silva.

A partir do Livro de Terras18 pode-se identificar a presença e localização dos principais troncos anteriormente mencionados. Restringindo-se aos Marinho e aos Pupo tem-se: Francisco Marinho possuía um sítio no rio de Ivaporunduva no “caminho intitulado da Vargem no pé do Morro Grande, córrego da Figueira ... cujo sítio fabriquei em mattos fazendo o seu demarco, córrego acima confinando com terras de José Benedito, e o demais lado ha certão”. João Marinho registrava dois sítios: um na paragem de “Morro Grande”, dentro do rio Ivaporunduva, possuído por ter “derrubado mattas nacionaes”, avizinhando-se com terras de Francisco Marinho; outro na confrontação com terras de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, de um lado, e de outro, com terras de Salvador Pupo. Salvador Pupo declarava possuir, em 31 de maio de 1.856, um sítio no lugar denominado Ivaporunduva, junto ao córrego do França, dividindo com terras de Antonio Justiniano da Costa e Esméria da Costa, que declaravam a posse de um sítio no mesmo córrego do França.

Os levantamentos realizados denotam que a presença negra em Ivaporunduva caracterizou-se por uma relativa estabilidade, possibilitando a reprodução do grupo em termos de gerações e grupos parentais relacionados a determinados territórios socialmente reconhecidos.

Nos relatos orais fica clara a relação da escravidão com a época da mineração, daí a distinção entre negros ex-escravos e negros livres que ocuparam a região. A memória separa a liberdade da servidão. As relações escravistas estão dissociadas dos principais troncos lembrados como fundadores, por exemplo: em São

Pedro os primeiros Furquim não são tidos como escravos, uma vez que já chegaram

livres neste local.

A coexistência de relações livres e escravistas no tempo e no espaço, demonstrada pela simultaneidade entre ocupação das fazendas e a presença de pequenos produtores rurais negros no Vale do Ribeira imprimiu uma especificidade que garantiu aos negros a constituição de uma vida social e econômica paralela à dominante, relativamente autônoma, embora de maneira nenhuma isolada.

Ivaporunduva é, segundo relatos orais, o mais antigo dos bairros negros do Vale do Ribeira. Associam-se a ele as antigas atividades mineradoras e as relações escravistas. Nesse sentido ele figura como um núcleo de referência para a formação de outros bairros negros localizados às margens do rio Ribeira.

A ocupação foi dada por uma teia formada pelas águas, importante canal de comunicação entre os povoados negros que foram se formando. Muitos desses lugares e também os localizados no município de Iporanga eram considerados pelos poderes locais como devolutos ou abandonados e propícios ao acolhimento de projetos colonizadores, que mais tarde teriam início no Vale do Ribeira. Este vazios demográficos, entretanto, estariam sendo ocupados por populações negras livres, tidas como perigosas, fundamentalmente porque amedrontava a idéia de que negros libertos se constituíssem em foco fomentador e organizador de insurreições e motins, pela possibilidade de circularem livremente e virem a se constituir em agentes de ligação entre os escravos das fazendas vizinhas.

A antigüidade da ocupação negra livre em Ivaporunduva é registrada pela grande incidência de registros de terras em nome desses negros, respeitados como vizinhos pelos proprietários brancos e declarados como confrontantes nos memoriais descritivos das terras.

O reconhecimento formal desses negros baseia-se em sua posição na estrutura social, que os definia como pequenos produtores, fornecedores de produtos de consumo para as fazendas, participantes da economia local enriquecendo comerciantes, reserva de mão-de-obra em períodos de safra e detentores de um saber sobre as técnicas de navegação dos perigosos rios, principal via de comunicação regional.

A comunidade de Ivaporunduva, baseada em sólidas evidências históricas, antropológicas e até arqueológicas, encontra total apoio nas disposições constitucionais

da Carta Magna sobretudo porque:

1. Fontes escritas (KRUG e SCHMIDT) e a própria tradição oral dos moradores mostram que a comunidade originou-se de um grupo de escravos que para lá foram compulsoriamente transferidos na condição de mão-de-obra cativa destinada à mineração do ouro;

2. A capela existente, tombada pelo CONDEPHAAT, data, segundo registros escritos, de 1.791, e tudo indica ter sido construída pelos próprios cativos, configurando uma evidência de ocupação bastante antiga da área e um patrimônio da comunidade;

3. Os descendentes dos escravos lá fixados jamais deixaram as glebas em que se estabeleceram, fazendo delas uso contínuo e coletivo, ao longo de diversas gerações, para a obtenção de seus meios de vida;

4. Esses remanescentes de escravos construíram uma autêntica comunidade, ou seja, um grupo autônomo e auto-suficiente de unidades familiares articuladas graças aos vínculos de parentesco, compadrio e vizinhança;

5. Esse grupo vê-se a si mesmo e também é visto como um grupo diferenciado, portador de uma identidade própria com base em elementos étnicos, culturais e históricos;

6. As terras são tidas como propriedade da comunidade, da Santa, muito embora sejam utilizadas pelos grupos familiares à medida das suas necessidades. Isso configura um padrão bastante peculiar de apropriação do patrimônio territorial, a assim chamada “apropriação comunal”.

7. Os relatos atinentes à constituição do grupo configuram um mito de origem, que remete o início da comunidade enquanto tal à chegada de Joanna Maria naquela localidade.

A comunidade de Ivaporunduva tem sido estigmatizada, avaliada por meio de apreciações preconceituosas, segregada e vitimada por graves injustiças, tais como apropriação indébita de suas terras e super-exploração da força de trabalho de seus integrantes. Passadas tantas décadas, nada mais justo, portanto, que essa comunidade quilombola possa obter, na forma da lei, as devidas reparações e o pleno reconhecimento de seus direitos, especialmente sobre as terras que ocupam.

13 Krug, 1942:272 - Relato de viagem, que Edmundo Krug fez pela região, resultando em documento publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1.912 - 1ª edição.

14Young, 1895:106 apud Stucchi, 1998:26.

15 Krug, op. cit.

16 QUEIROZ (1983:39)

17 Krug, 1942:272 - Relato de viagem, que Edmundo Krug fez pela região, resultando em documento publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1.912 - 1ª edição

18 Registros de números 269, 412, 416, 481 e 487.

Fonte: RTC ITESP 1998.