Nome: Associação dos Remanescentes de Quilombo de São Pedro.

 

Fundada em: 26 de outubro de 1980.

 

Publicação RTC: D.O. E – Diário Oficial do Estado; Poder Executivo, Seção I, São Paulo, 108 (217), terça-feira, 17 de novembro de 1998– 8-9.

 

RTC - Relatório Técnico Científico de identificação étnica e territorial dos remanescentes de Quilombo feito pela antropóloga Cleyde Amorim e equipe técnica da Assessoria de Quilombos do ITESP - Instituto de Terras do Estado de São Paulo, que se fundamente e transcreve parte do laudo dos antropólogos  Deborah Stucchi, Miriam de Fátima Chagas, Sheila dos Santos Brasileiro e Adolfo Neves de Oliveira Junior.

Memórial Descritivo: Perímetro 12º, 14º de Eldorado Paulista e 30º de Apiaí

                                     Município Eldorado e Iporanga

                                     Gleba: Comunidade São Pedro

                                     Área: 5.797,9498 ha

 

Retificação: D.O. E – Diário Oficial do Estado; Poder Executivo, Seção I, São Paulo, 110 (239), quarta-feira, 14 de dezembro de 200– x.

 

 Memórial Descritivo: Perímetro 13º e 27º de Eldorado Paulista

                                     Município Eldorado

                                     Local Gleba: Comunidade  André Lopes

                                     Área: 4.688,2661 ha

 

Reconhecimento pela FCP – Fundação Cultural Palmares: em 11 de julho de 2005.

 

HISTÓRIA DO QUILOMBO SÃO PEDRO

Pode-se explicar a formação ou, pelo menos, o adensamento populacional negro em bairros como São Pedro, Sapato, e Galvão, antigamente denominado Barra do São Pedro 13, localizados à margem esquerda do Ribeira, com base na lógica da expansão territorial em busca de terras férteis para o plantio. À medida em que a região do Vale do Ribeira consolidava-se como centro produtor e exportador de cereais, após o declínio da mineração, os negros, transformados em pequenos produtores rurais, desbravaram novos lugares tomados por meio do trabalho, promovendo um repovoamento da região.

Esse movimento de repovoamento abarcou os trechos menos valorizados esujeitos à especulação, ou seja, as terras localizadas às margens dos afluentes do Ribeira. Os relatos orais demonstram que a memória retém aspectos de parte do processo de fixação, que pode ser localizado no tempo, a partir da década de 30 do século passado, em que a mobilidade desses grupos foi um fator importante no movimento de expansão da população negra em busca de áreas de cultivo.

Em São Pedro, por exemplo, o homem considerado um dos primeiros a se fixar do bairro, do qual reconhece descender a maioria dos moradores, é Bernardo Furquim. Edu Nolasco de França relata que seu bisavô teria chegado à região sozinho com medo de ser capturado para o trabalho escravo: "contavam que ele veio corrido, veio fugido, parou aqui, começou a tocar serviço por aí, arrumou umas mulheres, gerou as famílias dele aqui dentro do bairro de São Pedro".

O tocar serviço é a categoria que qualificou os antepassados para possibilitar sua

fixação, aspecto valorizado atualmente como o modo privilegiado de acesso e permanência na terra:

"Bernardo Furquim trabalhava no serviço de roça, fábrica. Ele tinha fábrica de pilar café, arroz, fábrica de fazer pinga, criou boi (..), ele construiu fábrica de socar arroz onde nós estávamos fazendo um tanque. Naquele tempo ele não tinha carro para carregar o barro para fazer a barragem, então, ele pegava aquele couro de boi seco, punha no chão, enchia de terra com pedra e conseguiu fazer a barragem. "

Segundo Edu Nolasco de França, "naquelas veredas as mulheres não divergiam muito então ele arranjava uma mulher num lugar, ele sobrevivia com ela ali um pouco,' era muito fácil sustentar três, quatro mulheres. Ele era um cara muito inteligente". Benedita Furquim Rodrigues, informa que seu bisavô Bernardo possuía duas mulheres e 24 filhos que foram-se espalhando, inclusive, pelos outros bairros da região. Benedita Furquim Rodrigues, nascida em 1914, relata que quando da chegada de Bernardo Furquim ao bairro rural de São Pedro, antigamente denominado Lavrinha, já estariam lá estabelecidos outros moradores. Segundo ela, ninguém sabe ao certo quem eram esses moradores, mas a maioria seria do "tempo da escravatura". Mesmo as mulheres tidas como sendo de Bernardo "eram tudo da região, ele é que veio de fora, mas elas eram daqui, eram daqui porque das duas tinha uma mais trigueira e outra mais alva, que era filha de um colono". Dentre os ocupantes que antecederam a chegada de Bernardo Furquim, das suas duas mulheres, uma, pelo menos, era "do tempo da escravatura"

Alcides Furquim relata: "Em Pilões tem Furquim, em Maria Rosa tem Furquim,

por causa dessa descendência grande esparramou Furquim, vai indo, vai indo e vai esparramando um tanto para lá, um tanto para cá. Em serra acima tem Furquim ".

Os informantes de São Pedro são capazes de citar alguns dos 24 filhos tidos como de Bernardo Furquim. Benedita menciona José Furquim, Graciano, Lindolfo, Faustina, Miquelina, Donária, Mereciana e Mistarda. João Maciel menciona João Furquim e Marcelino. Maria Adelaide Pedrosa lembra Ana Maria Furquim. Braz Furquim menciona Zeferino Furquim 14.

É notável a funcionalidade operada pelas alianças de casamento nas primeiras gerações mencionadas pelos informantes entre moradores não parentes de localidades diversas como fator de ampliação e consolidação da ocupação territorial. Além delas, os casamentos ou uniões mais ou menos estáveis realizados entre primos paralelos ou cruzados e entre tios e sobrinhas podem ser citados como fator de povoamento e repovoamento de regiões pouco habitadas ou, ainda, habitadas principalmente por grupos de um mesmo tronco familiar. A memória genealógica dos informantes permite reconstituir, ainda que parcialmente, os deslocamentos relativos à ocupação dos territórios até, pelo menos, cinco gerações anteriores. Em outros termos, trata-se de pensar como as estratégias de ocupação que permitiram a manutenção de grupos mais ou menos estáveis no tempo, relacionados a um território reconhecido como próprio e reivindicado pelas comunidades hoje em dia. Não se trata de justificar o direito desses grupos ao acesso à terra a partir da retenção dessa memória, muito menos da vinculação do direito fundiário aos critérios de descendência e consangüinidade; em vez disso, trata-se de utilizar a memória genealógica como um dado operativo no sentido de compreender o modo pelo qual, pelo menos, a partir da metade do século XIX -às vezes antes -os grupos estudados ocuparam a região do Vale do Ribeira. Sobretudo, os levantamentos genealógicos permitiram identificar a manutenção de padrões de fixação reiterados ao longo do tempo e de sociabilidade que relacionam ainda hoje, de maneira específica, os vários bairros negros que constituem o Vale do Ribeira uma continuidade sócio-histórico-cultural. Pode-se afirmar, com base nesses dados, que as referências mais consistentes remetem a Ivaporunduva e São Pedro as primeiras indicações sobre alianças que povoaram e permitiram a ocupação hoje consolidada dos territórios historicamente significativos para as diversas comunidades negras do Vale do Ribeira, já citadas. O movimento de consolidação da ocupação negra no Vale assistido no período pósabolição foi iniciado, ao que tudo indica, a partir das alianças e da fixação de descendentes por toda a região entre moradores, inicialmente, das localidades acima indicadas. Assim, pode-se inferir, por exemplo, que São Pedro e Ivaporunduva tenham fornecido, ainda nas décadas de 50 e 60 do século passado, mulheres que possibilitaram a fixação, em terras próximas, de negros perseguidos em situação de fuga. É o caso de Ana Faustina, filha de Bernardo Furquim, que se teria unido a um certo João Vieira, cuja referência liga-se à ocupação do sertão de André Lopes, como será visto, em função das fugas do recrutamento, especialmente, para a Guerra do Paraguai. Duas filhas fruto dessa união, Donária e Mereciana, teriam com seus filhos possibilitado o fomento da ocupação em Nhunguara, André Lopes e Pedro Cubas. Mereciana teria se unido a Joaquim Ribeiro dos Santos, originário do Caracol. Donária teria se unido a Tomé Pedroso de Moraes, originário de Nhunguara. Irmão de Tomé, José Jacu também estabeleceu-se em André Lopes, tendo, pelo menos, cinco filhos, sendo que todos teriam permanecido no mesmo bairro, unindo-se a mulheres originárias de Ivaporunduva. Nas gerações seguintes, repetiram-se intensamente as uniões entre os membros de Nhunguara e André Lopes, entre si, e também com membros oriundos de São Pedro, Ivaporunduva, Sapatu e Pedro Cubas. De modo menos intenso, aparecem uniões nas gerações -3 e- 4 entre Nhunguara e Pilões, praticamente inexistindo, o registro de uniões entre membros de São Pedro, Nhunguara, André Lopes, Pedro Cubas e Sapatu com membros de Maria Rosa.

Do mesmo modo que as alianças de casamento relacionam São Pedro a André Lopes e Nhunguara, ligam o mesmo bairro a Sapatu. Um outro filho de João Vieira (André Lopes) e Ana Faustina Furquim (São Pedro), chamado Zeferino Furquim, ter-se-ia fixado antes do final do século XIX, em Sapatu, tendo-se unido a duas mulheres, Paula e Maria.

Morador de São Pedro Edu Nolasco de França afirma, sobre o território

associado a Bernardo Furquim, como referência de ocupação possibilitada, em grande

medida, pelas alianças de casamento:

"de lá de Ivaporonduva até nas Vargens, ele morou em um bocado de lugar aí,.

ele abria posse num lugar, formava aquela criadagem, passava adiante e assim ía. (..)

Quase todos os filhos de Bernardo ficaram aqui em São Pedro, depois foram vindo os netos de Bernardo .Lá por Ivaporunduva foi tudo de Bernardo Furquim, para cima, onde estão os Maia foi tudo de Bernardo ~..). As terras que nossos avós trabalhavam nela começavam da Barra dos Pilões para cima, lá do bairro Galvão e vai até o rio das Vargens, tem uns 12 ou 14 quilômetros. Cada filho formava uma posse, ficava trabalhando, os netos também trabalhavam ".

João Maciel, morador de Castelhanos, também descreve o território associado a Bernardo Furquim: "ele morava no Alegre, Boqueirão de Dentro, Galvão,. isso era tudo lugar que Bernardo Furquim andava”. O registro n° 469 do Livro de Terras da Paróquia de Xiririca, assentado no dia 10 de junho de 1856, descreve parte das terras pertencentes a Bernardo Furquim:

"Digo eu abaixo assignado que sou senhor e possuidor de um sitio na paragem denominada Boqueirão do São Pedro, distrito desta Villa de Xiririca, da frente do rio a sima faço diviza com meu cunhado João Dias em huma pedra grande, de frente do rio abaixo com Ignácio dos Santos em um pao de canela que tem. Por ser verdade mandei passar (?) e pedi ao senhor João Pedro de Pontes que este fizesse e assignasse por eu não saber ler nem escrever"

São Pedro, cujos primeiros registros de ocupação reportam a Bernardo Furquim, qualificado como preto livre, é mencionado pelos informantes como uma região onde a presença negra antecede à desse tronco familiar. Não há documentação precisa que descreva essa presença, no entanto, há menções indiretas presentes nos registros de terras que indicam a existência de vizinhos cujos registros não constam no livro de Terras de Xiririca. As lacunas documentais permitem supor que a relativamente numerosa vizinhança confrontante com os moradores de São Pedro que obtiveram o registro de suas posses pela Lei de Terras de 1850, tratava-se de uma população posicionada à margem da ordem social. Dentre essa população, encontra-se uma fração, cujo registro das terras ocupadas não foi possível pela restrição própria do instrumento, que dificultava o acesso às camadas mais pobres da população, ainda que branca. Outra fração, composta por uma população, eminentemente negra, que não se faria registrar por força da necessidade de manter-se oculta aos olhos da polícia local.

Considerando-se que a possibilidade de pretos livres terem acesso e efetivo uso da terra, ainda que em locais mais ermos, devesse contar com a aliança dos mais recentes com os ocupantes precedentes, o fato de alguns de seus moradores, negros libertos, terem acesso ao registro da terra poderia indicar o outro lado de uma aliança unindo múltiplos interesses. Terras oficialmente registradas estariam menos susceptíveis à fiscalização, protegendo uma ocupação caracterizada também por negros em situação de fuga.

13 A comunidade de Galvão não foi integrada diretamente nos trabalhos de levantamento de campo e definição da territorialidade porque, em decorrência das enchentes ocorridas em janeiro de 1996, os moradores do bairro, situados em terras baixas, foram acolhidos em residências de parentes de outras comunidades ou abrigados, tendo sido a localidade violentamente atingida pelas águas.

14 É possível recuperar, por meio dos registros de batismo da Paróquia de Xiririca e da Capela de Ivaporunduva, alguns dos filhos de Bernardo Furquim qualificado como "preto liberto"com pelo menos, duas mulheres diferentes: Catharina de SeDe e Maria Rodrigues, também "pretas libertas".

Em 1856, Bernardo e Catharina batizaram a filha Ana; em 1857 a filha Miquelina. Catharina de Sene aparece em 1818 batizando o filho Fabiano, em 1819 a filha Antonia e em 1824 a filha Emência, unida a Teotônio da Costa. A condição de Catharina de Sene varia, nos três registros, entre livre e parda liberta. Em 1870 Bernardo e Maria Rodrigues batizaram os filhos João e Marcelino, quando declararam residir em Pilões. Em 1871 batizaram o filho Lindolfo e em 1873 a filha Carmelina. Na década de 1860 diminuem sensivelmente os registros relativos ao batismo de filhos de pretos livres ou libertos em Xiririca. Bernardo Furquim, se teve filhos durante esses anos, não os batizou. Esse período coincide com o acirramento das perseguições voltadas ao recrutamento de contingentes para o exército, conforme identificado pelo volume de correspondências a esse respeito encontradas no acervo do Arquivo de São Paulo.

Fonte: RTC ITESP 1998.