Nome: Associação dos Remanescentes de Quilombo do Bairro Maria Rosa.

 

Fundada em: 05 de setembro de 1998.

 

Publicação RTC: D.O. E – Diário Oficial do Estado; Poder Executivo, Seção I, São Paulo, 108 (217), terça-feira, 17 de novembro de  – 1998 – 4 – 5.

 

RTC - Relatório Técnico Científico de identificação étnica e territorial dos remanescentes de Quilombo feito pela antropóloga Cleyde Rodrigues Amorim e equipe técnica da Assessoria de Quilombos do ITESP - Instituto de Terras do Estado de São Paulo.

Memorial Descritivo: Perímetro 19º e 35º Apiaí

                                     Município Iporanga

                                     Gleba: Quilombo Maria Rosa

                                     Área: 3.401,8745 ha.

 

Reconhecimento pela FCP – Fundação Cultural Palmares: em 12 de fevereiro de 2007.

 

HISTÓRIA DO QUILOMBO MARIA ROSA

A antiga divisa das Freguesias de Xiririca e Apiaí deslocou-se do Ribeirão dos Piloes13 para mais rio abaixo, de forma que os bairros de Maria Rosa e Pilões, passaram a pertencer ao distrito de Iporanga, e a partir de 1873, ao município de mesmo nome.

Os elementos gerais da própria auto-caracterização descrevem a auto-suficiência do conhecimento tradicional para lidar com os percalços da existência cotidiana, refletida no reconhecimento ativo de que "antes", antes que os bairros (Maria Rosa e Pilões) passassem a fazer parte cada vez mais ativa da região e do resto do mundo, dispensava-se todo 0 uso dos signos distintivos do homem da cidade, os calçados e os medicamentos. Essa constatação reflete também sua mudança inevitável, eles que usam hoje, ambos os produtos - ainda que não tanto quanto desejariam - como recorda a todo momento Pedro, liderança;a local e que já foi vereador na Ultima legislatura, eleito com os votos dos bairros de Maria Rosa e Pilões.

A ocupação do local e mais antiga que a memória das comunidades alcança, porque as famílias de ocupantes se sucedem umas as outras em uma me sma região, não guardando necessariamente memória daquelas que a ocuparam anteriormente. Essa característica de ocupação territorial aparece em Maria Rosa, cujos atuais moradores não são capazes de se recordar daquela cujo nome ficou associado ao território especifico, sabendo apenas afirmar que, ate onde soubessem, sempre tenha havido negros ali, somente negros.

Longe de ser indicio de uma suposta inconstância na ocupação negra no local, essa característica reflete uma forma de ocupação territorial que se consubstância pela ausência de grupos de descendência estáveis, muito provavelmente associada it manutenção de relações de vizinhança que se transformam em relação de amizade na geração seguinte, com casamento cimentando as relações entre famílias vizinhas. De resto, essa mesma característica e descrita por Antonio Candido nos Parceiros do Rio Bonito (1982), onde lança a definição clássica de bairro rural como urna entidade formada por relações de parentesco e vizinhança, por causa das quais e comum que famílias diferentes se sucedam em um mesmo espaço ao longo do tempo, sem que com isso o bairro deixe de possuir sua característica de unidade social distintiva.

A ocupação da região do ribeirão dos Pilões - assim como das mencionadas localidades de Nhunguara, Ivaporunduva e Serra do Quilombo - tem portanto dois momentos distintos: 0 primeiro dos quais marcado por extrema violência, não apenas a derivada da atividade garimpeira, mas também decorrente da resistência negra it situação escravista, revelando-se em rebeliões, mortes, fugas e forma9ao de quilombos - de onde se Origina a toponímia do lugar, Serra do Quilombo - certamente ocupado primariamente por negros, ap6s a expulsão dos povos indígenas da região. Em 1856, um oficio da administra9ao de Iporanga ao Presidente da Província de São Paulo informava "a existência de terras devolutas nos sertões do Rio Pardo e do Rio dos Pilões, as quais estão devolutas por falta de vias de comunicação para trânsito a tão férteis lugares" (Ofícios Diversos - Ordem 1339, Lata 544/ASP). Estariam essas terras em vez de vazias, ocupadas por popula90es negras; como constatou CARRIL (1995: 100) e1as eram sempre áreas de pouca visibilidade, afastadas de locais de maior transito: fundos de vales, ao longo de rios e longe de suas margens.

Na década seguinte, o Subdelegado da Policia de Iporanga, João Paulo . Dias, noticiava a Presidência da Província, em oficio de 28 de setembro de 1863, a existência de negros aquilombados nas proximidades do rio Pardo, solicitando providencias, conforme transcri9ao integral do documento:

"Por informações dadas por alguns moradores do Rio Pardo do Descrito desta Freguezia que, nos sertões do mesmo Rio distante d'esta vinte ou vinte e cinco léguas mais ou menos, sertões que divisam com 0 da Província do Paraná, se achão aquilombados alguns escravos fugidos do Norte desta Província, he de necessidade destruí-los pois que do contrario torna-se mais perigoso e graves prejuízos, consta mais que para ali tem se dirigido alguns criminosos que talvez estejão reunidos, e como esta subdelegaria querendo ver se pode batelos e não podendo 0 fazer por ter de fazer algum dispendio não só pela distancia como pelo perigo da viagem do Rio por ser caudaloso, embora os donos dos escravos tenhão de pagar as despezas, não se pode fazer por já ter acontecido com captura de alguns escravos nesta, os donos levá-los para mandarem pagar e nunca mais se lebrão que he devido a não se poder conserva-los na cadea desta Freguezia por não offerecer seguranr;a e ja por mais de huma vez tenho representado para remediar-se com esse melhoramento urgente que ate hoje tem sido esquecido.

Tenho de !azer lembrar a Vossa Excelencia que com gente do lugar nao se pode !azer diligencia de tal natureza por ser perigosa e mesmo alguns avisao aos que se pretende capturar; Vossa Excelencia a ter de mandar alguns permanentes para esse jim, antes que dessa saiao para esta tenha Vossa Excelencia a bondade de participar-me para desta dar os detalhes a jim de chegarem aqui desconhecidos. Aproveito a occasiao para fazer sciente a Vossa Excelencia que os permanentes que estao em Apiahy nao devem por la ser muito conhecidos.

Tenho mais a levar ao conhecimento de Vossa Excelencia que ja !az mezes que levei ao conhecimento do Senhor Doutor Che!e da Policia esta mesma participar;ao porem pelo silencio que tern havido julgo ter levado descaminho hem como outros mais officios que ao mesmo tenho dirigjdo. Deos guarde Vossa Excelencia por muitos annos. Subdelegacia de Po/icia de lporanga, 28 de Setembro de 1863".

Esse documento revela algumas informações importantes sobre a dinâmica da ocupação dos negros fugidos e rebelados. Em primeiro lugar, ele se refere a fuga como ocorrência sistemática na região, tanto assim, que os seus senhores delegando a policia a tarefa de captura, não honravam os custos das operações, um dos motivos pelos quais solicitava-se o reforço. Em segundo lugar, as tentativas de captura revelavam-se penosas e perigosas demais devido as dificuldades de acesso aos lugares e ao risco iminentes de violência. Em terceiro lugar, o documento deixa transparecer que, embora insulados em locais protegidos pela topografia das serras, vales e pelo perigo das fortes correntezas, os negros fugidos mantinham alianças com a população da região. Assim e que não poderiam ser utilizados os efetivos locais por serem estes conhecidos demais no lugar, correndo-se o risco de serem alertados os negros aquilombados antes que as milícias os pudessem encontrar. Relações derivadas de uma permanência relativamente continua no local das quais se deveriam desdobrar laços de afinidade e casamento, tanto quanto econômicos e sociais 14.

Um relato de Benedita Dias da Costa, moradora de Maria Rosa, remete não à origem do bairro propriamente dito, mas it forma9ao de sua pr6pria família e de sua instala9ao no mesmo, mas que revela parte da hist6ria do local em si mesmo:

"Essa passagem foi contada por Jose Gomes de Lima para Benedita Dias da Costa que sou eu que estou contando, que a minha bisavó era dos escravos e fugiu aqui para essa região, foi pega a laço e casou com Lotério, meu bisavô que também era daqui da mesma região, do qual nasceu Joaquim que casou com Antoninha minha avo, daqui também da mesma comunidade de Maria Rosa, da qual nasceu Maria minha mãe, que casou com Jose Gomes de Lima, meu pai, da qual nasceu três filhos e ela faleceu, deixando meu pai viúvo com todos nos pequeno, eu com treze anos, outro com oito e um neném com um mês de idade, meu pai lutou para nos criar sozinho, e eu me casei com Jose Dias da Costa, família daqui mesmo, descendente de quilombo, aonde nascemos e crescemos e estamos vivendo, nesta terra dos nossos antepassados e nunca queremos sair daqui porque ninguém tem experiência da cidade. Queremos cultivar a lembrança de nossos antigos"

Maria Rosa encontra-se praticamente em frente a Pilões, espraiando-se pr6ximo ao curso do ribeirão dos Pilões propriamente dito, acima do ponto de seu curso onde esta localizado Pilões. A antiguidade da ocupação de Maria Rosa pode ser constatada pe1a afirmação da informante de que sua bisavô, ao casar-se, já encontrou a localidade ocupada por negros15. Outros informantes, como Renato Gomes do Nascimento, referem-se a hist6rias contadas por seus familiares a respeito da presença de fazendas de trabalho escravo na região, onde os negros fabricavam aguardente, farinha de mandioca e eram usados em serviços domésticos: "neste tempo o amo comprava as pessoas e elas trabalhavam para ele como animais. Já tinha pago uma vez, mio pagava mais". Renato Gomes do Nascimento acrescenta, sobre urna localidade próxima, chamada Inveja:

"A inveja era do amo Diogo de Moura. Quando acabou a escravidão liberou a terra pros negros plantarem. 0 amo morava em Pilões, abriu aqui pros negros trabalharem. Tinha um ex-escravo chamado João Negro que veio morar em Maria Rosa com um monte de filhos. Então 0 lugar ficou conhecido como 'monte de negros', Montenegro. Maria Rosa deve ter chegado na mesma época que João Negro. 0 pai de minha mãe, Sebastião Gomes do Nascimento, veio de ltapeúna. Veio de lá com prado, no tempo da escravidão. ltapeúna chamava-se Jaguari 16. Lá tinha uma fazenda de negros e no Caracol 17 tinha outra. 0 fazendeiro era 0 mesmo Diogo de Moura. Desceu em ltapeúna e comprou minha avo com 0 negrinho. Foram morar no Caracol. A mãe de Sebastião chamava-se Maria de Proencia, ela e que foi vendida. Ali libertou os escravos, mandou ele se virar e cada um viver a vida como aprouvesse. Ai ficou 0 velho Sebastião, foi pra inveja e casou com uma mulher Maria Naia, irmã de Chiquinho, que morava na lnveja também e era casado com Maria Romão. Depois que Maria Naia morreu, Sebastião casou com Catarina Dias Messias, da Inveja. 

13 Os registros de batismo indicam a presença de pretos livres nos arredores do Rio Pilões a partir de 1844. Podem ser reconhecidos os troncos: Rodrigues da Silva, Dias, Batista, Costa, Santos, Pedroso, Gonçalves, Oliveira, Machado, Santos e Antunes que declaravam residir em Santana, na barra, ao longo do rio e na Capuava.

14 0 Quilombo existente no Rio Pardo pode ser uma importante indicaçao também para a compreensão do processo de formaçao das comunidades de Pilões e Maria Rosa, como também de João Surra, Cangume, Bombas, Claudia e Praia Grande, que situam-se no mesmo continuum hist6rico, econômico e social representado pelo Vale do Ribeira.

IS Os registros de batismo indicam a presen9a de pretos livres nos arredores do Rio Pilões a partir de 1844. Podem ser reconhecidos os troncos: Rodrigues da Silva, Dias, Batista, Costa, Santos, Pedroso, Gonçalves,

Apesar da suposição do informante de que a doadora de seu nome pessoal ao bairro tenha vindo com João Preto, o relato de Benedita mostra que, na geração anterior aquela a que ele se refere, o local já era habitado por negros, tendo sua bisavô casado com um morador do lugar. Coerente com esta démarche cronológica, o relato de Renato mostra-se centrado no período da abolição da escravidão, fato que se pode supor, deve ter tido grande impacto sobre o imaginário e sobre a memória histórica das populações negras da região - e, de resto, de todo o país - que viveram tal período.

Ora, a abolição não e mencionada- no relato de Benedita, 0 que indica que os acontecimentos narrados desenrolaram-se em época anterior a 1888.

Alem da presença de uma população negra não submetida as relações escravistas distribuída em terras que faziam parte da Freguesia de Iporanga, em épocas anteriores a abolição, pelo menos, duas menções existentes no Livro de Terras indicam a existência de terras ocupadas por escravos, reconhecidas por seus vizinhos, proprietários brancos.

Em 09/12/1855, com registro no 28, Jose Mendes Torres dec1arava posse de terras "no lugar denominado São João, dos dois lados da Ribeira, a saber (...) divide (. . .) rio abaixo com terras de Geraldo de Pontes na barra de um c6rrego e dahi para uma gruta secca para 0 centro a encontrar com terras de João, escravo de Rodrigo Bettim ( ... )". No ano seguinte, em 31/03, sob 0 n° 78, era registrada a propriedade de João de Moura e Oliveira, localizada no ribeirão de Iporanga, cujo memorial descritivo informava ter sido pertencente ao patrimônio do "fallecido Padre Bernardo de Moura Prado, (...) partindo com terras de Juliana e a seo centro, cujo sitio foi com prado parte delle e 0 mais cultivado pelos escravos do fallecido Padre Bernardo".

Oliveira, Machado, Santos e Antunes que declaravam residir em Santana, na barra, ao longo do rio e na .Capuava.

16 A analise dos registros de 6bito e batismo de escravos revelou, entre 1846 e 1874, a existência de inúmeras fazendas em Jaguari, entre as quais, a de Bento João da Cunha, Felipe Antonio Domingues, Belchior Alves de Oliveira, Domingos Antonio Cardoso, Bernardo Antonio de Ramos Moraes, Felisberto Pedroso de Moraes e Manoel Pedroso de Moraes. Sobre a propriedade em Jaguari e a descendência deste Ultimo, 0 informante João Maciel relata, diferenciando esse tronco branco do de mesmo nome, negro, residente em André Lopes: "Manoel Pedroso de Moraes era negociante no Batatal, era filho de Manoel Pedroso de Moraes, 0 velho. Para baixo de ltapeúna era deles, a fabrica de beneficiar arroz, tinha fabrica de pinga, jaz muitos anos. Conheci a armação da fabrica mas não eles trabalhando".

17 No Livro de Terras de lporanga, sob número 77, em 31/03/1856, era registrada a fazenda denominada Caracol, de propriedade de Joaquim de Moura Rollim, que também declarava possuir terras nas localidades denominadas São Bento (nO 79) e Parado (n° 80), ambas situadas nos limites da Freguesia de lporanga.

A partir dos dados levantados pode-se, então, reconstituir tentativamente 0 hist6rico da ocupação territorial desse trecho do Vale por brancos e negros. Persistindo rio acima a atividade garimpeira por tempo mais prolongado do que na porção do Vale a jusante, a mesma vê nascer 0 novo século, extinguindo-se apenas nas primeiras décadas do mesmo. A instalação de fazendas na região de Iporanga, como a Fazenda Santana, única mencionada pelos habitantes de Maria Rosa e Pilões, deve ter ocorrido mais tardiamente que em outros locais do Vale. E preciso lembrar que as outras únicas fazendas de escravos mencionados nos relatos dos informantes dos dois bairros citados são as Fazendas Jaguari e Caracol, a primeira localizada a meio caminho entre Pilões e a cidade de Eldorado, e a segunda localizada junto a Iporanga, ambas igualmente distantes do bairro.

Relatos de informantes apontam que, em feriados, os escravos da fazenda eram liberados para trabalhar a terra para si mesmos, plantando principalmente o arroz, mas também outros gêneros alimentícios, caracterizando uma atividade voltada essencialmente para a subsistência.

O quadro traçado pelos relatos dos informantes de Maria Rosa e de Pilões sobre a Fazenda Santana corresponde ao de uma propriedade rural voltada exc1usivamente para a agricultura e fabrico de aguardente, produzindo também gêneros alimentícios para a manutenção dos trabalhadores. 0 relato da informante Benedita parece indicar a presença de população negra não escrava no local em período próximo aquele suposto para a instala~ao da Fazenda Santana, ao mencionar que sua bisavô, casando-se com um morador local, deu origem a uma unidade familiar representada como livre de relações escravistas, estabelecida rio acima, isto e, no alto curso do ribeirão dos Pilões, distante da fazenda Santana, em local próximo aquele onde se estabe1eceram os escravos libertos pela Lei Áurea.

Parece ter havido uma ocupação territorial negra em Maria Rosa e Pilões, desvinculada daque1a promovida pe1a Fazenda Santana, mas contemporânea ou mesmo anterior aque1a, caracterizada pela economia de subsistência.

Esta hipótese sobre 0 processo de ocupação e aplicável para o Vale do Ribeira como um todo e pode ajudar a compreender sua história econômica a nesse período. No inicio do século XX o arroz era a principal cultura do Vale, produzido para a subsistência e para 0 comercio, este Ultimo realizado pelas barca~as que subiam o rio comprando a produção dos agricultores, previamente vendida a donos de armazéns construídos as margens do rio. Articulava-se, assim, uma rede de revendedores que arrebanhava, por preços pouco compensadores, os excedentes da produção de arroz local, propiciando aos proprietários das barca~as predominantemente de Iguape - a oportunidade de compra de um volume de arroz propicio a comercialização em larga escala. Desse comercio eram participes os pequenos produtores que, em sua maioria, revertiam ao mercado apenas quantidades ínfimas do produto (do ponto de vista do comercio atacadista), excedentes de sua produção também voltada a subsistência. Secundariamente também eram plantadas a mandioca e a cana-de-açúcar, repetindo um tipo de produção itinerante realizado nas encostas dos morros isolados, nos sertões ou nos centros, e ao longo da costa litorânea

(CARRIL 1995: 104). Ismael Julio ·da Silva, ate ha cerca de 25 anos atrás, era proprietário de um desses armazéns situado na passagem da balsa para São Pedro, margem esquerda do rio, relata como era realizada a transação com os pequenos produtores negros:

"Eu atendia o pessoal dos bairros, comprava deles e revendia em Eldorado arroz, feijão, café, milho. Buscava os produtos nos bairros de canoa e burros, ia para Pilões, São Pedro, lvaporunduva, Nhunguara. 0 outro negociante que tinha aqui era meu irmão Antonio Julio, mas eu comprava mais porque tinha mais e animal e canoa para comprar. iam dois camaradas por canoa para buscar, em cada canoa cabem uns trinta sacos de 50 quilos, e de animal eu tinha uns doze ou treze burros,,18

Portanto, a capacidade do Vale em fornecer arroz em quantidades propícias à comercialização com outros Estados era derivada não apenas dos latifúndios presentes na região, mas também da miríade de pequenos produtores negros instalados por conta própria no local a partir da decadência da mineração.

Analisando a dinâmica populacional da região nos séculos XVIII e XIX, CARRIL (1995) constata ter sido na virada do XVIII que a popula9ao livre supera a escrava em termos numéricos ate por volta de 1780, em Iporanga e Apiaí. A virada esta associada ao crescente cultivo de arroz, atividade que utilizava, comparativamente menos escravos que a minera9ao. Entre 1795 e 1805 a popula9ao negra efetivamente decresce em termos absolutos de cerca de 650 para cerca de 500 escravos.

Em 1767, urna lista de mineradores compreendendo a popula9ao da freguesia de Xiririca, Minas de Ivaporunduva e Arraial de Iporanga apontava a existência de 321 escravos, distribuídos em 102 fogos19 (Paulino de Almeida 1955: 81-82). Somente na freguesia de Xiririca, excetuando-se a população de Ivaporunduva e Iporanga, a proporção era de 21 mineradores para 268 escravos.

Em Iguape e Xiririca, rio abaixo, a população negra cai levemente entre 1806 e 1811, justamente no período em que se fortalece a cultura do arroz na região. Nesse mesmo período, a população escrava era maior em Iporanga e Apiaí do que no eixo Iguape Xiririca, onde a população livre era substancialmente maior. A superioridade numérica da população escrava rio acima pode ser associada ao fato de que o ouro ainda era encontrado em concentração suficiente para ser explorado comercialmente, o que atraia quase que exclusivamente mineiros com seus escravos para o local.

Em Iguape e Xiririca, pelo contrario, o estabelecimento da cultura de arroz e da cana-de-açúcar alterara radicalmente a relação populacional entre brancos livres e negros escravos na medida em que crescia o número de propriedades voltadas à produção desses gêneros, inicialmente, para fins de subsistência e, posteriormente, como produto comercial. Em 1817, o A viso Régio de 21 de outubro determinava um recenseamento dos lavradores da Capitania, revelando ter o município de Iguape 563 lavradores e 829 escravos e o de Xiririca 163 lavradores com 308 escravos (Tombamento de 1817 - Propriedades Rurais de São Paulo. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, 1935, vol. X, pp 57-64).

Ao longo do século XIX, a quantidade de brancos e pretos livres em relação à população escrava continuou a decrescer: em 1836, a população escrava representava cerca de 31% do total. Cinquenta anos mais tarde, a população escrava representava apenas 10% do conjunto da população (PETRONE 1966: 91).

Cabe, aqui, uma reflexão sobre a condição expressa pela maioria dos negros que aparecem nos registros eclesiais do século XIX, qual seja a de "livre" ou "liberto", e que ocuparia parte significativa das terras disponíveis no período. Sua presença na virada do século XVIII em Ivaporunduva esta ligada à ocupação da localidade como arraial de minas desde o século anterior e, como vimos, ao estabelecimento da população negra a partir de uma doação de terras por parte da antiga proprietária, com a consecutiva libertação dos escravos que a serviam.

18 Ismael Julio da Silva, 87 anos em 1997, herdou do pai Jose Julio da Silva e da mãe Nhá Lena o estabelecimento comercial de que cuidou durante 50 anos. Alem dessa atividade, relata que possuía uma olaria, plantava café e "tocava muito serviço, tinha muitas terras". Em 1939, Edmundo Krug descrevia a viagem entre a barra e a nascente do ribeirão Pilões realizada em embarcações da viúva de Jose Julio, que oferecia também hospedagem aos viajantes (pp 584, 588). A família destacava-se na região pela superioridade econômica, 0 que ainda perdura atualmente. Segundo João Maciel, Jose Julio, nascido no Vale e morto em 1914 aos 80 anos, teria recebido terras como premio pela participação da Guerra do Paraguai onde "foi expedicionário, sorteado, como foram outros rapazes que tinham mais de 21 anos". Ap6s termino da Guerra onde "outros morreram em combate, ele retomou para a terra dele porque era forte, e montou a loja". Pelas estimativas do informante, Jose Julio, filho de uma negra chamada Maria Severina da Silva, nasceu por volta de 1830 tendo a época da Guerra do Paraguai quase trinta anos. A participação como combatente nesse conflito foi uma das formas de acesso a terra possibilitada a população negra no Brasil.

Os classificados como libertos e livres desfrutavam, por um lado, a posição mais privilegiada da popula9ao negra, ou nos termos de REIS (95/96: 35), a "elite da comunidade africana nos tempos da escravidão", por outro lado, eram vistos como amea9a permanente a ordem escravista brasileira. Representavam, sobretudo, a possibilidade de lideran9a dos motins e revoltas escravas:

"eles ocupavam posições estratégicas na estrutura social, a partir das quais podiam conspirar eficientemente contra a classe senhorial. Possuíam habilidades nas artes e ofícios, como armeiros e ferreiros que podiam fabricar armas; por circularem entre os livres, tinham acesso a informações privilegiadas sobre seu governo, estado de espírito, seus medos e fraquezas; em suas casas se refugiavam escravos, que faziam reuniões conspiratórias, guardavam dinheiro para armas e munições, as quais eram ali também guardadas; os libertos tinham uma mobilidade que lhes permitia fazer a ponte entre escravos rurais e urbanos, e divulgar mais facilmente idéias de rebeldia; por fim, a sua posição privilegiada e independente representava um modelo da possibilidade de um mundo sem 0 governo dos senhores ".

As autoridades entendiam esse perigo e desencadeavam contra eles as a90es repressivas aqui descritas, sobre suas festas religiosas e seus folguedos, quando podiam experimentar e representar uma inversão da condição subalterna cotidiana por meio da alegoria dos reis e rainhas de suas congadas.

As dificuldades de manutenção e obtenção de espaços sociais pelos negros libertos e livres devem ser entendidas dentro de seu estatuto, problema-tico por definição. Conforme mostra Carneiro da Cunha, "negro e escravo eram pensados. Como categorias coextensivas. Conceitualmente, ser negro era ser escravo e ser escravo era ser negro" (1985: 86). Do mesmo modo como a existência de escravos com pele de tonalidades claras escandalizava clero, viajantes e imprensa do Brasil no século XIX, a cor negra era suficiente para ser presumido escravo, possuindo eles o ônus da prova em contrario. Carneiro da Cunha cita inúmeros exemplos de libertos ou ingênuos ilegalmente escravizados: "Na Paraíba, em 1844, escravos ou negros livres achados nas ruas depois do entardecer 'sem ordem de seus senhores' (mas que senhores, neste ultimo caso?) eram levados a delegacia de policia e açoitados" (1985: 89).

Vimos também que, a despeito da presença desses libertos em Ivaporunduva e arredores, constatada pelos registros de terra assentados entre 1854 e 1856 em Xiririca e Iporanga, uma infinidade de vizinhos, também negros, deixou de procurar a igreja para fazer constar sua presença no local, como por exemplo, em Nhunguara, André Lopes, Pedro Cubas e São Pedro. Alem disso, todos os re1atos sobre os considerados primeiros moradores de muitos desses locais apontam a existência anterior de moradores, com os quais, alias, estabe1eceram-se relações de afinidade nas gerações seguintes, como foi 0 caso de São Pedro.

Assim, paralelamente a presença tolerada de negros com suas terras e filhos registrados pela igreja, estabeleceu-se uma profusão de outros moradores, também negros, cuja presença permanecia sub sumida aos olhos das autoridades locais, avidas pe10 recrutamento de bravos e de combatentes.

Tais menções indicam a complexa variação das formas de acesso a terra presentes no Vale do Ribeira que possibilitaram a ocupação da região por uma população negra em períodos anteriores a 1888, que se consolidou no período pós-escravista e alcançou a sua permanência contemporânea em moldes tradicionais conforme apresentado a seguir.

Apos a virada do século, a vida cotidiana das comunidades negras do Vale do Ribeira parece re1ativamente inalterada ate a década de 1930, época das primeiras tentativas governamentais, neste século, visando a regularização fundiária e a contenção da ocupação livre das terras consideradas devolutas. A geopolítica da ocupação do Vale, então mostrava os grandes proprietários ocupando as melhores terras, aque1as mais propicias a produção agrícola, em uma região montanhosa onde grande parte das terras encontra-se em níveis de inclinação que impedem seu aproveitamento para a lavoura. E nessa época que a primeira grande transformação econômica ocorre na vida das comunidades negras do Vale no século XX, com a introdução da cultura da banana, que se espalhou rapidamente pelo baixo e médio Ribeira 20. Tais transformações somente passaram a afetar de maneira mais sensível a vida cotidiana das comunidades a partir da d6cada de 1950, com a introdução da segunda grande atividade econômica marcante da vida atual das comunidades: a extração do palmito juçara, que impôs o abandono relativo das roças, aumentando a necessidade de aquisição dos produtos básicos que antes eram produzidos nas proprias comunidades familiares.

Com a ascensão da estração comercial do palmito a partir da d6cada de 1950,0 Vale do Ribeira tomou-se a mais importante região fornecedora do produto no Estado de São Paulo, tendo-se assistido a instalação de industrias em Eldorado, Juquiá, Miracatu, 19uape, Jacupiranga e Registro. Curiosamente, foi o aumento da demanda de palmito provocado pelas exportações brasileiras do produto que retira da rota principal de comércio do produto o Vale do Ribeira, urna vez que as exportações passaram a ser supridas pelo norte do pais, região capaz de produção exponencialmente maior que a do Vale, o que era necessário para que o produto fosse exportável (CARRIL; 1995: 112-13).

Outro elemento que passa a exercer urna influencia modificadora sobre 0 modo de vida tradicional das comunidades é a intervenção do Estado de forma eficaz e organizada que até então, por meio da criação de parques e da política de construção de barragens nos rios da região, ambos os elementos catalisadores da organização dos membros das várias comunidades negras do Vale.

20 No entanto, 0 cultivo sistemático da banana inicia-se nos anos 1980 para aque1a região. Sapatú, por exemplo, s6 começa cultivar sistematicamente a banana no inicio daquela década, a partir do incentivo de grandes bananicultores, que passaram a comprar parte de sua produção.

A política voltada para a construção de barragens com finalidade de produção de energia tem inicio na década de 1950, época dos primeiros estudos de viabilidade de utilização do potencial hidrelétrico local. No final dos anos 1970, a CESP solicitou ao Ministério das Minas e Energia autorização para a realização de estudos de aproveitamento hidrelétrico da bacia do rio Ribeira, no trecho de sua nascente até o ribeirão Pilões. A usina hidrelétrica Funil foi projetada com urna barragem de 70 metros de altura, formando um reservatório de cerca de 34 Km2, gerando 150 megawatts de energia. Preve-se que o reservatório inundara mais de mil hectares dos 449.446 ha da Área de Proteção Ambiental da Serra do Mar, na região de Pilões (CARRIL; 1995: 130).

Mais recentemente, a Usina Hidrelétrica Tijuco Alto, projetada pela Companhia Brasileira de Alumínio, do grupo Votorantin, para ser construída na divisa dos Estados de São Paulo e Paraná, prevê a inundação de 52.800 hectares e a remoção de 1200 famílias de agricultores residentes na região de formação do lago. A licença previa para a constru9ao da obra foi aprovada pelos conselhos estaduais de meio ambiente do Paraná e São Paulo em 1994, mas foi suspensa por meio de liminar concedida por juíza do Tribunal Regional Federal (3a Região).

No Vale do Ribeira os projetos de constru9ao de barragens suscitaram a emergência e a visibilidade do segmento negro no campo, urna vez que as barragens determinariam O alagamento de parte de seus territórios. A organiza9ao de um movimento social centrado no reconhecimento do caráter peculiar da ocupa9ao territorial negra e imemorial do Vale tomou contorno contra a construção de barragens no curso do rio Ribeira de Iguape ou em outros que interferissem no curso normal do rio (CARRIL; 1995: 130-31).

A ameaça representada pela construção das barragens, e obscurecida nos períodos críticos de cheia, quando as águas atingem de modo violento, especialmente as localidades situadas as margens do rio como Ivaporunduva, Sapatú, André Lopes e Galvão, a exemplo das enchentes devastadoras ocorridas em fevereiro de 1997. Durante o período mais intenso das cheias, o volume das águas dos ribeirões próximos aos nuc1eos principais de Maria Rosa e Pilões subiu desmesuradamente, inundando as casas mais próximas dos leitos. Em Pilões, os moradores relataram que o campo de futebol da localidade, próximo a barra do ribeirão Itacolomi com o ribeirão dos Pilões, foi atravessado de canoa para se atingir as casas que se encontravam na própria margem do ribeirão. As estradas de acesso para Pilões, Maria Rosa e, mais para baixo, São Pedro estiveram em péssimas condi90es de transito na ocasião, deixando praticamente isolados, sem socorro e suprimentos, durante vários dias, os moradores dessas localidades. Casas localizadas as margens do rio em Sapatú foram inundadas pelas cheias desalojando inúmeras famílias; pelo menos urna foi inteiramente derrubada face a força das correntezas, tendo seus moradores perdido varias sacas de arroz, milho e feijão, alem da mobília, roupas e documentos. Galvão, antigamente denominada Barra do São Pedro, situada às margens do rio Ribeira, foi severamente atingida pelas cheias, inúmeras casas foram inundadas e seus moradores foram abrigados por parentes residentes em São Pedro, ou os que conseguiram atravessar 0 Ribeira, foram alojados nos abrigos improvisados pela prefeitura de Eldorado no ginásio municipal, igrejas e outras instalações publicas transformadas em acomodações para os desabrigados. As três principais balsas que fazem a travessia entre as margens esquerda e direita do Ribeira também deixaram de operar por algumas semanas, uma por ter sofrido danos e as outras por terem sido perdidos os pontos de atracação.

Um quarto elemento a modificar a vida tradicional das comunidades negras do Vale do Ribeira foi a política de instalação das unidades de conservação por toda a região a partir de 1950. Diferentemente dos ciclos econômicos do ouro e do arroz, ambos referindo-se a iniciativas onde a ação do Estado fazia-se sentir apenas como poder regulador e fomentador da ação de agentes individuais e empreendimentos de caráter privado, agora 0 próprio Estado assume 0 papel de interventor direto na vida cotidiana dos bairros. Dos 1,5 milhões de ha que formam o Vale do Ribeira, cerca de 700.000 ha são considerados terra devoluta (CARRIL; 1995: 105). E primordialmente sobre estas terras que recai o ônus das restrições ambientais, onde esta situada à maioria das comunidades negras rurais de remanescentes de quilombos. A política de criação de parques estaduais tem sido realizada sob o pressuposto de que terras discriminadas como devolutas estão livres da presença humana, pouco importando a ocupação centenária e imemorial de tais comunidades na região.

O primeiro Parque Estadual a impactar a vida tradicional dos moradores dos bairros da região, especialmente, Maria Rosa e Pilões foi o PETAR - Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, com 35.884 hectares, criado em 1958 como parte de uma estratégia para racionalizar a extração de palmito. Em 1988, por meio de decreto estadual, foi incorporada ao PETAR uma gleba de terras devolutas, que passou a administração do Instituto Florestal. Pilões foi impactado mais indiretamente na medida em que as redes de solidariedade características dos bairros negros do local era afetada pelos efeitos diretos da unidade de conservação sobre Maria Rosa.

Os Parques Estaduais de Carlos Botelho, o de Jacupiranga e o de Intervales complementam o cenário de impactos promovidos pelas Unidades de Conservação no Vale do Ribeira. O de Carlos Botelho foi criado em 1982, reunindo quatro reservas florestais criadas na década de 1940, abrangendo os municípios de São Miguel Arcanjo, Sete Barras, Capão Bonito e Tapirai. E 0 único dos Parques Estaduais que tem a situação fundiária regularizada em seus 37.664 hectares de área. Com limites consolidados há várias décadas, 0 Parque Estadual de Carlos Botelho não e citado como fonte de impactos diretos sobre 0 cotidiano das comunidades estudadas (Atlas das Unidades de Conservação Ambiental do Estado de São Paulo; 1997: 16).

O Parque Estadual de Jacupiranga foi criado em 1969, por decreto-lei estadual, possui área aproximada de 150.000 hectares e abrange parte dos municípios de Jacupiranga, Iporanga, Cajati, Eldorado, Barra do Turvo e Cananéia (Atlas das Unidades de Conservação Ambiental do Estado de São Paulo; 1997: 17). Sendo 0 segundo maior parque em extensão do Estado de São Paulo, e também uma fonte permanente de conflitos. Implantado de maneira incompleta, 0 Parque possui dentro de seus limites moradores não desapropriados ou indenizados, loteamentos clandestinos, extensos bananais e fazendas, espalhando-se sobre as comunidades negras de Sapatú, Nhunguara e André Lopes. A reativação de projetos de turismo ambiental fomentados pelo Instituto Florestal ensejou nova fase de conflitos com as comunidades em setembro de 1997. As populações negras da região, especialmente as pertencentes as comunidades de Nhunguara e André Lopes foram sendo, ap6s a cria~ao do PEJ, empurradas para as bordas do Parque onde reside a maioria dos moradores, atualmente, exposta também a conflitos fundiários com fazendeiros. F oram reduzidas as áreas de cultivo, restando apenas algumas unidades domesticas no interior do Parque.

O Parque Estadual de Intervales, criado por decreto estadual em 1995, a partir da Fazenda Intervales, antiga propriedade do Estado de São Paulo, e o único administrado pela Fundação Florestal. A antiga fazenda, com limites consolidados foram anexadas duas glebas consideradas terras devolutas, mas que eram ocupadas imemorial e tradicionalmente pelas comunidades negras de São Pedro, Maria Rosa, Pilões, Pedro Cubas e Ivaporunduva. Com a criação do PEJ foram totalizados os 46.086 hectares atuais e apresentados os motivos que levaram os representantes das comunidades de Ivaporunduva, Pedro Cubas e São Pedro a representar, em 1995, Procuradoria da Republica em São Paulo, noticiando a incorporação de suas áreas ao Parque.

Concorreu para impactação crescente dos modos de vida das comunidades negras do Vale, alem das unidades de conservação acima mencionadas, a criação das áreas de proteção ambiental e a incrementação de legislação ambiental especifica, especialmente após 1988, que promoveram 0 recrudescimento da fisca1ização. Conhecidos sob a rubrica genérica de a "Flores tal " ou 0 "Meio Ambiente ", os agentes ambientais tomaram-se para os moradores a expressão da repressão e da violência.

A maioria do território tradicional das comunidades negras do Vale do Ribeira foi abrangida e afetada de maneira direta ou indireta pelas Unidades de Conservação criadas após a década de 1940, assim como a implantação da Área de Proteção Ambiental da Serra do Mar, em 1984, que abrangeu parte de 11 municípios do Vale ° Com aproximadamente 469.450 hectares, a APA da Serra do Mar fecha um circuito geográfico com as outras Unidades de Conservação do Vale do Ribeira, sobrepondo-se a elas em algumas áreas, que incide em, praticamente, toda a região onde estão localizadas as comunidades negras estudadas. O zoneamento da AP A da Serra do Mar criou urna extensa área reservada de Zona de Vida Silvestre (ZVS) incluída nos territ6rios ocupados pelas comunidades, onde e proibido ou regulado o uso dos sistemas naturais. A criação da APA da Serra do Mar promoveu a intensificação das atividades fiscalizadoras na região, de modo que, a partir da década de 1980, viu-se dificultada ou impedida, na maioria das situações, a atividade agrícola. Embora não seja proibido o manejo agrícola no interior da APA, faz-se necessária urna licença expedida pelo órgão estadual licenciador, em que o requerente deve apresentar o titulo de propriedade da área a ser desmatada. Este requisito exclui a imensa maioria dos moradores das comunidades negras, classificados institucionalmente com posseiros21. Na ausência dessa licença a Policia Florestal autua o morador, que responderá administrativa e civilmente pelo ato 22.

Por extensão, outras transformações no cotidiano das comunidades ocorreram após a extração do palmito ter-se tornado comercial, por volta da década de 1950, quando se processou um lento abandono das roças familiares por parte dos moradores das comunidades de Pilões, Maria Rosa, São Pedro, Ivaporunduva, Pedro Cubas e as localidades circunvizinhas, tendo mesmo algumas desaparecido. No entanto, a extração do palmito foi tornada ilegal pela Lei nº 4.771 de 15/09/1965 (Código Florestal), que considerou contravenção penal extrair produtos florestais, penetrando em florestas de preservação permanente, sem estar munido de licença da autoridade competente (letra "c", Artigo 26). Se a extração do palmito ocorrer em um dos parques, 0 ato poderá ser qualificado como "causar danas aos Parques Nacionais, Estaduais ou Municipais ", também considerado contravenção penal pela letra "d" do mesmo Artigo 26. Como agravante, o extrator poderá ainda ser indiciado por ''furto ", delito qualificado pelo código Penal.

Além da extração do palmito ter-se tornado ilegal, como vimOS, grande parte das práticas tradicionais de manejo e cultivo da terra também o foram, deixando as comunidades negras do Vale do Ribeira sem alternativas de subsistência. O resultado mais imediato desse processo foi a extração do palmito ter-se transformado na principal atividade de subsistência. A extração clandestina do palmito revelou menores riscos do que 0 plantio das roças já que 0 fogo e as clareiras atraiam facilmente a fiscalização ambiental. Com as culturas de subsistência severamente restringidas, os membros das comunidades passaram a exercer atividade extratora ilegal, com a comercialização do palmito feita por atravessadores que compravam o produto in natura a preços extremamente inferiores aos de revenda (CARRIL: 1995: 114).

21 A Comunidade de Ivaporunduva obteve do 6rgao licenciador estadual, por meio de sua Associação, no final do ano de 1997, uma licença ambiental coletiva para efetuar desmatamento para cultivo, inaugurando uma nova fase na relação com oEstado e revelando 0 potencial político das comunidades negras do Vale do Ribeira. 22 Com a nova lei ambiental, em vigor a partir de l0 de abril de 1998, o morador poderá ser indiciado, inclusive, criminalmente.

A política de instalação das unidades de conserva9ao no Vale do Ribeira tem por móvel o fato de que o alto e médio Ribeira concentram grande parte da mata atlântica remanescente no país. Dos 13.000 Km2 dessa vegetação que se estima existir ainda hoje, 8.350 Km2 estão no Vale do Ribeira. Parte desse trecho e ocupado por comunidades ha mais de um século, mas a ocupa9ao humana não tem sido levada em consideração por planificadores da política ambiental que a consideram um incomodo para suas noções idealizadas de espaços protegidos como naturais e livres. da presença antrópica. Apesar de as comunidades e a Mata Atlântica terem sobrevivido juntas ao processo, altamente predat6rio, de ocupação territorial e expansão das fronteiras econômicas efetuado pela sociedade colonial e nacional, os paradigmas do planejamento ambiental não parecem relacionar a permanência desses grupos ao estado de preserva9ao da floresta nessa região. Como resultado, as restrições legais impostas as comunidades negras quanto ao manejo da terra nos moldes tradicionais impedem 0 uso da mesma em cerca de 75% das terras do Vale como um todo (CEDA V AL, 1985).

A história da ocupação territorial do Vale do Ribeira, portanto, e a história da formação das comunidades negras a margem dos grandes ciclos econômicos que ensejaram a descontinua ocupação branca na região, porem, articuladas com aquelas de urna maneira autônoma ou semi-autonoma. A história do Vale do Ribeira e paralela a da formação das territorialidades tradicionais, expressas hoje nos inúmeros bairros, predominantemente formados por negros, que caracterizam a região. Contemporaneamente, essa mesma história tem sido representada pelas comunidades de Maria Rosa, Pilões, São Pedro, Ivaporunduva, Pedro Cubas, Sapatú, André Lopes e Nhunguara (e também outras comunidades negras do Vale) como a história das mudanças em seu modo tradicional de vida a partir, principalmente, da ação do Estado na questão fundiária, na política de instalação de usinas hidrelétricas no curso do rio e na formulação de políticas ambientais, todas as três com forte potencial destrutivo das relações sociais que cimentam as territorialidades tradicionais das comunidades negras do Vale do Ribeira.

Fonte: RTC ITESP 1998.